terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Lyscia Braga - Texto de Teatro

PROJETO DE MONTAGEM

Este projeto é fruto de muitos anos de pesquisas em diversos textos, quadros, contos e poemas, relacionados com os temas universais que irão compor este espetáculo.
Além da beleza do poema " Herodias " de Mallarmé e do texto teatral " Salomé " de Oscar Wilde, juntei a eles, a mitologia básica de diversos povos e religiões modernas, anexando textos: hindus, budistas, muçulmanos, judaicos, católicos, protestantes, africanos e indígenas brasileiros, e transformando personagens de religiões antigas em modernos por uma ótica bem brasileira, que é o carnaval carioca. E, como disse Mallarmé: "Pretendo pintar não a coisa,mas o efeito que ela produz..."
A idéia, é montar " A FESTA ", ao ar livre, no Rio de Janeiro, no verão carioca.
O público ao chegar, receberá uma máscara, afinal é carnaval no reino do Tetrarca Herodes, e os convidados não serão apenas espectadores comuns de teatro, eles serão como que convidados de uma festa.
Iremos trabalhar os cinco sentidos de forma ativa. Para a "visão", trabalharemos com o fogo na iluminação do espetáculo (toda ela feita com tochas, candelabros, velas perfumadas, pequenas velas entre os dedos dos atores, etc...). Os figurinos serão fabulosos, como os de destaque de escolas de samba para a corte e os religiosos, em contraste com os figurinos do povo, feitos em tecidos rústicos. Os cenários também terão esta mistura, mesclarão a grandiosidade e decadência de um palácio amazônico com animais em extinção empalhados e um mar de lama de onde sairá ineterruptamente uma fumaça e que terá sobre ele uma passarela contornada por tochas de fogo e coberta de areia.Em volta do pântano, ficará as mesas que serão ocupadas pelo público, tendo encima delas, velas perfumadas por diferentes cheiros, trabalhando o "olfato", que será trabalhado também pela comida e bebida, no lixo, no pântano e ainda, no cheiro dos atores, que será exalado pelo corpo, por movimentos de coreografias alucinantes, que mesclarão as danças das raças mencionadas na peça. Odores agradáveis e desagradáveis, serão provocados por incensos e perfumes de diferentes cheiros com diversos propósitos a cada cena. O "paladar", também será trabalhado, já que durante a peça, teremos um banquete, que terá um cardápio semanal, variando entre exóticas ceias, típicas das religiões atuais abordadas pela peça: Indiana, Vegetariana, Africana, Chinesa, Japonesa, Judáica, Romana, Arabe, Síria, e Indígena Brasileira. Este banquete será realizado por restaurantes especializados, com objetos, serviços típicos, e vestidos à caráter. Trabalharemos ainda, o "tato", ao manusearmos diferentes objetos estranhos à nossa cultura. Mas será depois da ceia, que iremos ter contato com diversos objetos eróticos e na "feira" esotérica ao início,onde poderemos manuseá-los e ainda durante todo o espetáculo, com o uso de uma máscara, que este sentido será saciado. Para a "audição", teremos desde o texto que mescla poemas de Mallarmé,"o poeta do belo", com dois poemas seus transformados em cantos operísticos, devidamente cantados por uma cantora de ópera, com um côro vocal especializado em pesquisas de sons de diversas partes do mundo, composto por 11 múcisos cantores, que irão fazer uma trilha sonora viva de sons e ruídos, de estados de alma, choros de diversas raças humanas e animais, sotaques diversos, barulhos comuns etc... Fora isso, músicas antigas do carnaval carioca, e o belo texto teatral de Oscar Wilde, que se une a poesia de Mallarmé como se fossem um só, traduzidos por mestres.
Além dos cinco sentidos, trabalharemos também, os elementos, ou seja, a terra, o ar, a água e o fogo, como se pôde observar acima, utilizando-os de diversas formas. A "terra", como lama, e como areia branca com sangue; o "ar", como fumaça do pântano, dos incensos, e das velas perfumadas; a "água" límpida do banho, suja do pântano, e das bebidas; O "fogo", na luz das velas, das tochas, candelabros e todos eles ainda nas fantasias.
A equipe deste espetáculo, será formada de um elenco de 25 atores músicos dançarinos, entre eles uma cantora de ópera e uma mímica.

SINOPSE
Na festa dos sentidos é aniversário de Herodes, o Rei.
O público mascarado penetra nos jardins do palácio, iluminado por tochas de fogo, tendo o chão coberto por lama e lixo, que exalam diferentes cheiros.Ao chegar nas escadarias do palácio, depara-se com um mar de lama e no meio desta, por baixo, por cima, no alto, diversas crianças, como animais acuados, observam imóveis o público avançar. De súbito, os pivetes começam a gritar, como numa feira livre, sons desconexos, com sotaques de diversas línguas humanas. Começam a se mexer rapidamente, e tentando agora, vender diversos objetos esotéricos, cercando o público em movimentos circulares e rápidos, abrindo e fechando em torno deles.
A guarda carioca, legítima representante da raça, aparece no alto da escadaria do palácio, de metralhadora em punho. Os pequenos marginais, afastam-se e se encolhem, escondendo-se na lama e, ao longo da escadaria por onde começam a subir os convidados religiosos ( atores ), representantes das mais significativas religiões de hoje. Ostentando figurinos luxuosos, sempre de acordo com a vestimenta característica de cada religião, desfilando como se estivessem num concurso de fantasias, até o topo da escadaria, onde cada um, faz um pequeno discurso sobre a sua fé, acenando para o povo, e despedindo-se, entram no palácio. Um dos religiosos, ao passar pelos pivetes, rouba-lhe, e este, sentado junto ao lixo, chora durante todos os discursos, fazendo um som de fundo, para os discursos religiosos.
Os pivetes, tornam a ocupar a escadaria, misturando-se ao lixo e tentando vender os seus produtos religiosos, repetem cada vez mais exaltados, os discursos que acabaram de ouvir.
A guarda carioca, atira, pedindo silêncio e manda o público ( convidados),sentar, sem parar de atirar na multidão.
Os pivetes fogem, debaixo do tiroteio, gritando alto os discursos dos religiosos, ficando alguns feridos, pelo caminho.
A guarda fecha os portões e manda o público esperar sentado até que Herodes os mande entrar.
No alto está a fachada do palácio. Por debaixo dos portões centrais, escorre uma lama, correndo pelo meio até formar um mar de lama, de onde sai uma fumaça contínua e um cheiro estranho. Sobre o pântano, uma passarela coberta de areia branca, rodeada por tochas de fogo que iluminam este ambiente, encoberto por uma névoa. Alguns pequenos animais, estão imóveis, como empalhados, e com olhos luminosos, observam a cena, que tem um ar amazônico. Nas laterais, em torno do pântano, o público irá se sentar em mesas, o mar de lama escorre pelo centro. Sobre o pântano, num tablado coberto de areia branca, está uma terrina de pedra, onde está imersa Salomé Herodias. Sua Ama, despeja água para o seu banho, e canta em estilo operístico, a música poema " Encantamento ", de Mallarmé.
Saindo do banho como de um batismo, Salomé prepara-se para entrar no mundo dos adultos que ela tanto despreza. Sua Ama tenta por três vezes, animá-la, mas ela recusa. Profundamente infeliz, tenta fingir que acha tudo normal, mas está desesperada por ter que viver num mundo tão imundo. A Ama sai, levando a terrina de pedra do banho e Salomé, só , apaga as velas do seu candelabro e no escuro, chora. O som de diversos choros, surgem de vários pontos.
O som dos choros, são abafados por gargalhadas e uma estridente música de carnaval toma conta da cena. O baile começou.
Na fachada do palácio, às escuras, ouvimos além da música, gritos de depravação e vimos, através de sombras, e de pequenos pontos de luz provocados por pequenas velas,que saltam junto com a corte de Herodes, cenas eróticas.
Contornando o palácio, numa ronda, trazendo tochas de fogo nas mãos, a Chefe da Guarda e a Pajem de Herodíade a Índia, conversam sobre suas religiões.
A Guarda Carioca, chega vindo pelo lado oposto, e em seguida, saindo do baile, suados e desarrumados, entram na ponte, o Pastor Capadócio e o Pai de Santo Gay, que sairam para dar uma cheiradinha, indo para um pequeno terraço sobre o mar de lama.
No alto, por cima do portão, está acorrentado e vendado, o Profeta de uma nova religião. Ele é Iokanaan, e ao seu lado fantasiado de anjo, está o executor, Naam, a mímica. Eles estão iluminados por tochas de fogo, presas dos dois lados. O Profeta Iokanaan, grita.
Salomé, também fantasiada, aparece no terraço, fugindo das obscenidades do baile e dos olhares depravados que o Tetrarca, seu padrasto, lhe lança.
A Chefe da Guarda, bajula a princesinha, que é o seu amor. A Pajem de Herodíade,a Índia, sua amante, entristece, pressentindo uma desgraça.O Profeta continua a gritar.
Salomé,admira-o ao ouvi-lo gritar contra as depravações de sua mãe. Quer vê-lo, mas tendo o Tetrarca proibido a todos qualquer aproximação dele, somente a Chefe da Guarda, poderá autorizar.
A Ama, enviada pelo Tetrarca, vai ao terraço chamar Salomé para voltar ao baile, mas esta, recusa-se. A Chefe da Guarda, tenta convencê-la a voltar ao salão, mas é ela que a convence de deixá-la ver o Profeta da nova religião.
Iokanaan, o Profeta, é trazido acorrentado e vendado à presença da princesa, ele é colocado na passarela sobre o pântano, coberta de areia branca, tendo nas laterais tochas de fogo, agora acesas. Dele exala um doce perfume.
Ao vê-lo, descobre nele, o único mortal que poderá amar. Salomé desperta o seu desejo de mulher e quer possuí-lo. Desvenda-o e tenta inutilmente seduzi-lo, sendo recusada violentamente. Tenta acariciá-lo,mas ele a repreende brutalmente e quanto mais é repreendida, mais ela o deseja.
A Chefe da Guarda, ao ver esta cena, desiludida, mata-se e cai entre o Profeta e Salomé, que nem assim desiste de seu amor. A areia branca está manchada de sangue.
Fruto de uma sociedade decadente, acostumada a ter o que deseja, a qualquer preço, impunimente, a paixão de Salomé, não tem limites, beira a loucura a sua obesessão. Desprezada, a sua fraca personalidade imatura, agora possuída por um desejo selvagem, é capaz de qualquer coisa para possuir o que deseja, ou seja, o Profeta.
Ajoelhada no sangue, ela implora ao Profeta um beijo. Ele tenta agredí-la com suas correntes e lhe cospe na cara, fugindo de volta para a sua prisão. Salomé, vê terminada aqui, a sua infância. Desprezada, ela se isola numa posição fetal, ficando só, no meio do sangue.
A Pajem de Herodíade,a Índia, chora sobre o corpo de sua amante, a Guarda Carioca. O Pastor Capadócio, e o Pai de Santo, discutem a retirada do corpo, puxando-o, ora para um lado, ora para o outro,seguidos pela Pajem Índia, a lamentar-se; no chão, sobre a areia branca, diversos rastros de sangue e marcas das mãos do morto. Eles temem serem surpreendidos pelo Tetrarca, que só gosta de ver os corpos que ele mesmo mata.
Tarde demais, num animado trenziho carnavalesco, comandado por Herodes,o Tetrarca, entra a corte e os convidados religiosos ao terraço.
Herodes, está fantasiado de Sol, sendo o mais luxuoso dos trajes, e Herodíade, a Rainha Adúltera, se veste de fogo, no meio dos diversos convidados, vestidos com fantasias da mitologia básica de todos os povos.Eles cantam uma antiga música de carnaval "Tô com Diabo", percorrendo animados a fachada,indo parar ao final, sobre o pântano, onde Herodes, escorrega no sangue. Ele veio atrás de Salomé, que ele deseja, por se tratar da última virgem.
O pântano começa a exalar um cheiro desagradável.
Herodes, ao saber de quem é o sangue, conversa com Tijelino, o Bispo, o hábito do suicídio, achando muito esquisito que a Chefe da Guarda, o tenha cometido. A considera bárbara.
Para cortejar Salomé, ele resolve ficar no terraço, o que desagrada a sua rainha, Herodíade a Adúltera, que estava se divertindo tanto, com o Bispo Tijelino, no escurinho do baile.
Novas tochas são acesas e o pântano fica agora todo iluminado. As músicas de carnaval, continuam ao fundo. Mesas e outros apetrechos, são instalados sobre o terraço.
Herodes, manda servirem a ceia, e tenta em vão, chamar Salomé para perto dele. Herodíade, percebendo suas claras intensões, é extremamente hostil com o Tetrarca. Temendo perder o seu trono, ela se agarra ao poderoso enviado de Roma, o Bispo Tijelino, tentando desmoralizar Herodes.
A ceia é servida, e todos bebem e comem, inclusive o público. ( A cada semana, um restaurante especializado servira uma ceia, os restaurantes serão de: comida árabe ou síria, comida africana, comida índigena brasileira, comida vegetariana ou hindú, comida romana, comida chinesa, comida japonesa e comida judáica; de acordo com as religiões modernas, representadas na peça ).
Após a ceia, Herodes abre os presentes que recebeu, e como uma criança, maravilha-se diante das novidades da indústria erótica. Ele manuseia os seus presentes com uma curiosidade infantil e nada pornográfica,dando aos objetos de sex shop, outras utilidades.
Enquanto isso, a Guarda Carioca, acessorada por um dos religiosos, tenta vender ao público,como se fossem cópias ou produtos furtados dos cofres de Herodes alguns destes objetos.
O Profeta lança profecias terríveis ,e todos passam a discutir religião. Herodes, medroso, tenta analisar as profecias como melhor lhe convém. Já Herodíade, odeia o Profeta, e quer vê-lo morto, cansada de ser insultada diante de todos por ele, deseja que Herodes o mate ou o entregue aos seus inimigos religiosos.
Herodes, cansado de brincar com os seus presentes, e já visivelmente embriagado, pede a Salomé que dance para ele, mas ela se recusa. Ele insiste muito, oferecendo a ela até a metade do seu reino, mas somente quando ele lhe diz que ela poderá escolher o que quiser depois de dançar, e de jurar pelos seus deuses que cumprirá, seja lá o que for, é que ela, tomada de possessa loucura, resolve dançar, o que para ela é como prostituir-se aos olhos de todos, vendendo a sua pureza velada, em troca de saciar o seu desejo, e acalmar o seu ego rejeitado.
Salomé é banhada por perfumes, que ela tanto odeia, descalça, é coberta de jóias e de finos véus, ficando seminua, ela dança ao som de uma música lúgubre, onde todas as raças de animais e humanas choram, e todos os gritos de aflição afloram. Ela dança a princípio uma coreografia baseada em posturas iogues, dando aos poucos, lugar a uma luxuriosa dança afro.
O fantasma da Síria Chefe da Guarda, assiste a tudo, se juntando ao coro de soluços e gritos chorosos que compõem a música.
A corte, é também coreografada, por expressões infernais de corpo e de sons guturais.
É sobre o pântano, na areia manchada de sangue, que exalando perfumes do corpo coberto de jóias, nua, que Salomé, dança febrilmente a caminho da morte.
Após a dança, Herodes, extasiado, chama Salomé para perto dele, mas ela ajoelhando-se, pede num prato de prata, a cabeça do Profeta, que ela tanto deseja possuir.
Herodes, teme. Oferece a ela, tesouros milagrosos, tentando em vão dissuadí-la,mas ela está firme no seu desejo. Herodíade vibra. Herodes cede e o anel da morte é entregue ao executor, que treme, afinal o Profeta é um puro, um santo.
Salomé, inteiramente desvairada, não consegue mais esperar o seu presente, teme que o executor, falhe. Grita e exaspera-se.
Numa bandeja de prata, lhe é entregue a cabeça do Profeta Iokanaan. Ela o possui.
Herodes esconde o rosto, os monges jogam-se no chão em atitude de súplica. Herodíade se abana feliz.
Com muito medo de alguma desgraça, Herodes ordena que se apague as tochas de luz, para que no escuro, ele possa melhor se esconder.
Salomé, a sós, no escuro, conversa com a cabeça de seu santo amado e finalmente arranca da boca do Profeta, o beijo que ela tanto desejava.Sente um gosto amargo, o gosto do amor. E ali, sobre o pântano, ela se sente saciada, como numa noite de núpcias.
Herodes, voltando-se, assiste a esta cena, apenas iluminada por uma fraca luz, e horrorizado, manda matar Salomé a Pura.
A Guarda Carioca, metralha Salomé, que cai morta.
A Ama e o fantasma da Chefe da Guarda, recolhem o corpo, enquanto canta em tom operístico "o Dom do Poema", de Mallarmé, ao som de um coro de vozes.
A cabeça sem dono, paira sobre o pântano. Súbitamente, ela se move e fala " O Cântico de São Jõao ", de Mallarmé, enquanto alça vôo rumo ao céu, sumindo na escuridão.
O silêncio é quebrado, por gritos de várias raças famintas, que agora, invadem o palácio. São os pivetes, que vendiam objetos religiosos, na primeira cena, que agora mais velhos, são um bando de ladrões, miseráveis marginais. Eles, armados até os dentes, tomam o palácio de Herodes, alguns continuam tentando vender os objetos esotéricos, só que de forma agressiva. Aquele menino que foi roubado no início por um dos religiosos, é agora o chefe dos bárbaros. Eles invadem os aposentos de Herodes, e voltam com toda a corte e seus convidados religiosos, ameaçados pelas armas e gritos dos bandidos, que os obrigam a se ajoelharem e a rezarem. Os religiosos, cada um de sua fé, rezam a diferentes deuses.
No alto, no local onde antes esteve amarrado o Profeta, aparece agora, os fantasmas, de Salomé, do Profeta e da Síria Chefe da Guarda, que aplaudem a cena,levando o público a fazer o mesmo.
FIM


TEXTO TEATRAL : " A FESTA " Ao comprar o ingresso,o público recebe uma máscara, afinal, é num baile de carnaval que se desenrola esta história, e ele opta por comprar uma ceia ou não. Toda a iluminação é feita por tochas de fogo, e o teatro deve estar às escuras. No chão, sacos de entulho, muito lixo, desde a entrada do teatro, até a rampa de acesso, que está sendo invadida por muita lama; ao entrar no ambiente (como um anfiteatro), com arquibancadas como escadarias, que levam aos portões do palácio de Herodes, o público terá que passar por pontes laterais, já que todo o círculo do "anfiteatro" está coberto por um mar de lama que vem escorrendo pelo centro das escadarias, saindo por debaixo das portas do palácio, cuja fachada está no alto das arquibancadas, e contorna todo o anfiteatro. A lama desce em cascata pelas escadarias, formando ao fim da mesma o pântano, onde se desenrolará a maior parte das cenas. O público irá se sentar nas laterais das arquibancadas, de frente para o pântano e de costas para a grandiosa fachada. A sua frente, sobre o pântano, está uma ponte, bem no centro, contornada por tochas de fogo, e esta termina num pequeno terraço, que tem ao fundo uma vegetação amazônica. Do outro lado, ou seja, em frente a ponte iluminada, junto aos portões do palácio, no alto da escadaria, irá existir uma torre em forma de falo, como uma escultura, onde estará preso o Profeta Iokanaan. Esta escultura, está no meio da lama que escorre dos portões, e em sua base deverá existir um pequeno tablado, elevado, que se junta a ponte central. Bichos empalhados fazem parte da cena, e nas laterais, junto às pequenas pontes de entrada do público, ficarão os serviços para a ceia."
Início do Espetáculo : O público entra, subindo a rampa e ultrapassando os montes de lixo. Ao entrar no ambiente, o mar de lama exala cheiros, e neste ambiente, depara-se com diversas crianças, como animais acuados, que observam imóveis, como que empalhados, por baixo, por cima, e dentro do pântano. O público avança indo para as mesas. O Profeta, começa a gritar, o povo (crianças) falam alto, como numa feira livre, sons desconexos, com sotaques de diversas línguas humanas. Começam a circular rapidamente, e tentam vender ao público, diversos objetos esotéricos, cercando o público em movimentos circulares e rápidos, abrindo e fechando o cêrco em torno deles.
PROFETA IOKANAAN
O Deus soberano é essencialmente bondade! Aproxima-se o reino de Deus! Os homens comuns seguem os passos de um grande homem, qualquer que seja a ação que execute, e quaisquer que sejam as normas por ele estabelecida por seus atos exemplares, são seguidos por todo mundo! Aqueles que destroem as tradições familiares , residem no inferno! A pessoa que não se perturba, apesar das três misérias, que não se exalta quando há felicidade, e que está livre do apêgo, do medo e da ira, chama-se um sábio de mente estável! Só uma pessoa que tenha renunciado a todos os desejos para a gratificação dos sentidos, que vive livre de desejos, que renunciou a todo o sentido de propriedade e está desprovida de falso Ego, pode alcançar a paz verdadeira! Execute o seu dever prescrito, pois a ação é melhor que a inação, sem trabalho, um homem não pode nem mesmo manter o seu corpo físico!
(As crianças, povo, emitem diversos sons, e começam a se mexer, tentando vender objetos religiosos como numa feira livre, como as feiras árabes ou os nossos conhecidos camelôs, eles disputam a preferência do público / o Profeta torna a gritar )
Deve-se tentar sempre, concentrar sua mente no Eu supremo, deve-se viver sozinho num lugar isolado e sempre controlar cuidadosamente a sua mente! Deve- se estar livre de desejos e sentimentos de posse! A mente é inquieta, turbulenta, obstinada e muito forte, e subjulgá-la é mais difícil que controlar o vento! Como o sol ilumina todo este universo, assim também a entidade viva una dentro do corpo, ilumina o corpo inteiro através da consciência! A natureza material consiste dos três modos: Bondade, Paixão e Ignorância! Quando a entidade viva entra em contato com a natureza, ela fica condicionada por estes modos! O modo da bondade, sendo o mais puro que os outros, ilumina e livra a pessoa de todas as reações pecaminosas. Aqueles que se situam neste modo, desenvolvem conhecimento, mas ficam condicionados pelo conceito de felicidade! O modo da Paixão, nasce dos desejos e anseios ilimitados, e por causa disto a pessoa se prende às atividades materiais! O modo da Ignorância, causa a ilusão de todas as entidades vivas, e o resultado deste modo é a loucura, a indolência e o sono que prendem a alma!
( No alto das escadarias, junto aos portões do palácio, aparece de metralhadora em punho, a Guarda Carioca, uma legítima representante da raça. Os pequenos marginais, ao vê-la, se escondem como podem no meio da lama)
GUARDA CARIOCA
(Atirando primeiro e falando depois) Desinfeta cambada! (Atirando e rindo alto) Eu quero ver você dançar (Atira em outro) animais.... (Para o público) Onde estão os convidados especiais ? Estão sempre atrasados.
( Surgem vários personagens: Os Religiosos, com trajes carnavalescos de destaque de escolas de samba, com as características da sua fé / Eles entram enfileirados, passando sobre a ponte central, de onde acenam para o público.Eles desfilam mostrando os seus trajes / As crianças boquiabertas com o luxo das fantasias, saem como que hipnotizadas dos seus esconderijos )
GUARDA CARIOCA
Vamos abrindo, não quero ninguém no caminho cambada de lixo, voltem para o lixo ( Atira nas crianças, mas os monges Indiano e Budista , intervém )
HARE KRISNA
Não tenham medo da morte! Qualquer pessoa que abandona o seu corpo em consciência de Krisna, se transfere de imediato à morada suprema. A lembrança de Krisna, não é possivel para a alma impura que não tenha praticado a consciência de Krisna em serviço devocional. Para se lembrar de Krisna, deve-se cantar o mahãmantra, Hare Krisna, Hare Krisna, Krisna Krisna, Hare Hare, Hare Rãma, Hare Rãma, Rãma Rãma, Hare Hare, incessantemente. (O povo repete o mantra, baixinho) Sendo mais tolerante que a árvore, mais humilde que a grama, e oferecendo todo o respeito aos outros, sem exigir respeito em troca...Só assim a pessoa será capaz de partir com êxito do corpo; lembrando-se de Krisna, e assim alcançará a meta suprema... Como pode a pessoa morrer no estado mental apropriado? Mahãrãja Bharata, pensou num veado na hora da morte e então foi transferido para esta forma de vida. Entretanto, como um veado, ele pode se lembrar de suas atividades passadas. É natural que o efeito cumulativo dos pensamentos e ações da vida de uma pessoa, influenciem os seus pensamentos no momento da morte, por isso as ações desta vida, determinam o futuro estado de existência de uma pessoa. Se a pessoa estiver transcêndentalmente absorta no serviço a Krisna, então seu próximo corpo, será transcendental, espiritual, não físico. Portanto, cantar Hare Krisna, é o melhor processo para mudar com êxito, o estado de existência de uma pessoa para uma vida transcendental. Esta instrução é muito importante para todos os homens ocupados em atividades materiais, o Senhor não diz que a pessoa deva abandonar seus deveres e ocupações, a pessoa pode continua-los e ao mesmo tempo pensar em Krisna, cantando Hare Krisna... cantando os nomes de Krisna a pessoa será transferida sem dúvida ao planeta supremo. Hare Krisna (volta a cantar, caminhando para o palácio, a multidão de pivetes canta com ele o mantra até serem cortados pelo discurso do monge budista)
MONGE BUDISTA
Calem-se! E me escutem... A força propulsora do universo e da transmigração, não é um deus criador e ordenador dos destinos, é exclusivamente os atos bons e maus de cada criatura. Cabe aos budistas a honra de haverem isolado e firmado o dogma da transmigração universal, a qual os deuses, como todas as criaturas vivas, se acham submetidos! O budismo é ateu! Não admite senão deuses provisórios. Tendo acumulado méritos nesta vida, qualquer homem pode renascer como Deus, e esgotados estes méritos, morre no céu e renasce para um destino inferior. A reencarnação em lugar de gôzo ou punição, depende únicamente do valor moral dos atos de cada um. Só a moralidade e a sabedoria podem estabelecer alguma distinção entre os homens. Os monges esforçam-se por conquistar o nirvana, como o cristão a vida eterna, com alegria e esperança. Entretanto, o nirvana não é uma beatitude da esfera dos sentidos ou da inteligência, é um estado transcendental, com a cessação da dor e o eterno rejuvenecimento. O objetivo é a supressão do desejo e do ódio, e nesse intuito cumpre purificar a alma pela prática da abstinência, da continência e da benevolência generalizada. Devemos incutir em nossa alma o horror pelo prazer e submeter à vida à meditação da morte e do cadáver, devemos libertar periodicamente a alma pela prática das diversas modalidades de hipnose. Mais ainda devemos nos esforçar por destruir aquilo que é o mais arraigado dos sentimentos da criatura, " o amor de si mesmo ", " É preciso destruir o egoísmo ". A salvação virá para todos pelo simples poder da fé! Bastar evocar o nome de Buda, pronunciando " NAMU AMIDA BUTSU " ( todos começam a repetir ), que quer dizer " adoração ao Buda de vida e luz infinitas ", e termos uma vida simples, com disciplina do corpo e da alma. Esta é a seita Zen, a seita dos guerreiros que voçês devem seguir...NAMU AMIDA BUTSU
( O judeu vermelho de raiva, exaltado começa o seu discurso em defesa de sua fé.
O JUDEU
Blasfêmia! Escuta meu povo! Escuta Israel! O Senhor é nosso Deus, o Senhor é uno! O Senhor criou e governa todos os sêres, ele não tem corpo, é eterno. Todas as palavras dos profetas do Senhor, sÀo verdadeiras, Moisés é o maior dos profetas, toda a Tora, a lei, é a que foi dada a Moisés, e esta lei não pode ser alterada ou substituída. Deus conhece todas as ações e todos os pensamentos, Deus recompensa os que observam seus mandamentos e pune os que os transgridem, ( o povo começa a repetir baixinho o discurso do Judeu, de forma desordenada ) Deus fará vir o o a discursar )
PAI DE SANTO GAY
Que era! Depois da destruição do templo de Jerusalém e do desaparecimento de cultos e sacrifícios, o sacerdote ( debochado ) meu caro, tem apenas privilégios HO NO RÍ FI COS... Metido...
JUDEU ( quase explodindo de raiva )
Você, você... seu... Como ousas falar assim com um mestre, um rabino, sou eu quem preside o culto celebrado nas sinagogas, eu sou um sábio!
PAI DE SANTO GAY ( interrompendo de novo, debochadamente )
É sabidinho é, como que você passou de sumo sacerdote juiz, a um simples guia religioso? Voçê é como eu, tolinho ( beijinhos )
JUDEU
Eu não admito que voçê me dirija a palavra... Como você!! Seu indigno, seu, seu... Quimbandeiro sexual ( sai indignado, deixando o Pai de Santo furioso )
PAI DE SANTO GAY
Não vem não heim, senão eu te entrego prá um orixá! Tá pensando o que? Eu sou muito homem... Eu não sou como voçê não, no meu terreiro quem manda sou eu! O BabalaÔ SOU EU, O iAÔ, o chefe espiritual...
Quimbandeiro é você! Seu espírito sem luz... Eu tenho muita força espiritual, uma coroa bonita... Os meu orixás são poderosos e protegem muito bem, me dão conhecimento e poderes, Você quer ver, quer ver? Não me ofende, que eu caio no santo aqui, agora mesmo, seu encosto... e aí voçê vai ver quem eu sou... quando eu fico possuído, eu posso rolar em cacos de vidro ou enfiar um punhal em qualquer parte do meu corpo que eu não sinto nadinha... Volta aqui covarde, ficar ofendendo uma pessoa como eu?... Eu vou te entregar prá um orixá, vou fazer uma demanda prá você, cretino... Você vai ver comigo, o meu guia de cabeça é ogum, o orixá da guerra e ele é o vencendor de demanda por excelência, com ele ninguém pode ( sua expressão corporal é a de um homem forte, com uma espada na mão, dança como se estivesse cavalgando ) e ele é meu anjo da guarda... Eu sou muito bom no santo, prevejo o futuro e tenho muitas entidades, e os deuses, ( para o público ) os deuses vivem é em aruanda e não no nirvana ou não sei lá onde, isso que essezinho aí e os outros falaram para vocês não passa de uma grande mentira prá enganar otário ( olhando para um dos atores do povo, um menino, e indo até ele ) Nossa! Menino! Como você está carregado!... isso está parecendo coisa feita viu, ou então é olho grande! Você tem que se proteger, a inveja fecha os seus caminhos... Eu vou te dar um passe, levanta, (dá um passe ) você tem que se desenvolver , você é um medium...e isso é uma honra viu, colega, você tem capacidade de entrar em contato com as divindades, eu sou um médium vidente, tenho visões, vejo os orixás ou aquilo que eles desejam que eu veja, já nasci feito ( a esta altura o povo já está de novo fechando o caminho, aparece o enviado de Roma, o Bispo Tijelino, a guarda atira, para abrir caminho, mas o Pastor Capádocio passa a frente do Bispo e dirige-se ao povo)
PAI DE SANTO GAY
(Se esquivando das balas, foge para o palácio) Ai, ai, ai, sua maluca ... assim você me fura todo!
PASTOR CAPADOCIO
Quanta baesteira! Que gente mais primitiva, e estes orientais, que papo brabo... Minha gente! Meus irmãos! Nós somos ocidentais, civilizados, não devemos dar ouvido a estes malandros oportunistas, já basta os católicos, com os quais nós rompemos a tempos, uma gente dedicada à política e ao mundanismo, são uns aproveitadores, deixaram de desempenhar o seu papel de guia espiritual, intermediário entre os homens e Deus há séculos. Mas graças ao senhor, vocês tem a mim, seu pastor!
BISPO TIJELINO
(O Bispo Tijelino, interrompe de longe já que não pode chegar mais perto, pois o Pastor se encontra sobre o pântano, por onde só passa uma pessoa) Você, usa o nome do "Senhor" em benefício próprio, mas terá de se haver com "Ele" no juízo final (ajoelha-se de forma teatral) "Senhor, salvai-nos, pois desapareceram os homens piedosos e a lealdade se extinguiu entre os homens. Uns não tem para com os outros, senão palavras mentirosas; adulação na boca, duplicidade no coração. Que o Senhor extirpe os lábios hipócritas e a língua insolente. Defenda-nos Senhor, desta raça maléfica, porque os ímpios andam de todos os lados, enquanto a vileza se ergue entre os homens."
PASTOR CAPADOCIO
"Não invejes a glória nem as riquezas do pecador,pois não sabes qual será a sua ruína" ( ao público ) E vocês irmãos, que aflitos, perguntam o que fazer para alcançar a salvação, eu vos respondo, venham a mim, o seu Pastor, e vocês encontrarão a resposta procurada, nos meus ensinamentos, que apoiado na fé e aceita a justificação do pecador como devida a expiatória de Cristo, sem qualquer intervenção dos méritos da criatura, incessantemente renovada pelas almas que por tradição familiar, ou por tendência natural, costumam resolver por si os teus problemas espirituais, esta é a máxima do protestantismo... Contribuam para elevar a nossaa fé ( se dirigindo ao povo ) Contribuam! (O povo oferece diversos pertences e dinheiro ) Contribuam e eu os libertarei! Me dê a sua contribuição! Livrem-se do demônio da ganância ! Reparta com nossa igreja os teus bens e o reino dos justos será teu! (Aponta para um ator do povo) Você! Você está possuído... possuído... Mas eu o exorcizarei (o ator tenta fugir, mas o Pastor o segura) Venha demônio, não adianta tentar fugir... (estapeia o ator) Saia deste corpo, saia daí miserável! Eu lhe ordeno que saia (estapeia mais)
BISPO TIJELINO
(O Bispo começa a gritar) Não escutem este excomungado! Não contribuam para o paganismo! A verdadeira fé é a de Roma, e é para lá que vocês devem enviar as tuas contribuições.
PASTOR CAPADOCIO
(Continuando a estapear e sacudir o ator do povo)Saia, em nome de Deus, saia! (para o público) Nenhum demônio resiste ao santo nome. (O ator estapeado, larga a sua bolsa de dinheiro, e o Pastor a pega) Pronto... agora você está livre do demônio da ganância, ele já foi para o beleléu... (sorri cinicamente, e vai saindo repetindo para o povo para contribuir/vai contando o dinheiro arrecadado)
BISPO TIJELINO
(Caminhando sobre a ponte) Não contribuam... ou eu os excomungarei...É a mim que vocês devem enviar as suas contribuiçÕes, para que eu as entregue em Roma...Pois é lá que está a casa do Senhor, em Roma! E eu sou o enviado de Roma...Só o catolicismo poderá salvá-los...(muda o tom) Povo católico! Meu povo... É preciso que vocês contribuam com ouro, para que Roma, a casa do Senhor, a verdadeira casa do Senhor, se abra para vocês, uma pequena contribuição em vida lhes dará uma casa douirada na vida eterna. Sabemos que ao se disfazer a tenda que habitamos neste mundo, recebemos uma casa preparada por Deus e não por mãos humanas, uma habitação eterna, no céu, e que enquanto permanecemos nesta terra, gemeremos oprimidos. Aquele que nos formou para este destino é Deus, o mesmo que nos deu por penhor o seu espírito. Por isso estamos sempre cheios de confiança. Sabemos que todo o tempo que passamos no corpo é um exílio longe do Senhor. Andamos na fé e não na visão. Porém teremos que comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali, cada um receberá o que mereceu, conforme o bem e o mau que tiver feito enquanto estava no corpo, portanto ainda há tempo... Contribuam para o aumento da grandeza do verdadeiro Senhor, o único! Através da minha santa pessoa, vocês poderão receber a graça do Senhor, e subirem aos céus quando chegar a hora, tudo irá depender do tamanho de suas generosidades... Amém! (Entra no palácio)
PROFETA IOKANAAN
(Torna a gritar) Embora possa haver muitas formas transcendentais do Senhor, elas são a mesma suprema personalidade de Deus! Quando sua inteligência superar a densa floresta da ilusão, você vai se tornar indiferente a tudo que se tem ouvido e a tudo que se há de ouvir! (a Guarda Carioca, rindo alto, começa o massacre dos inocentes, o povo foge, muitos são feridos, o Profeta grita mais alto) Aquele que pensa que a entidade viva é a que mata ou é morta, não compreende! Aquele que tem conhecimento, sabe que o " Eu" , não mata nem é morto! Para a alma nunca há nascimento nem morte, nem uma vez que exista, ela vai deixar de existir! Ela é não nascida, eterna, sempre existente, imortal e primordial! Ela não morre quando o corpo morre! A alma nunca pode ser cortada em pedaços por nemhuma arma, nem pode ser queimada pelo fogo, nem umedecida pela água, nem seca pelo vento! A alma é eterna, imutável, eternamente a mesma! Nunca houve um tempo que eu não tenha existido, nem você, nem todos estes Reis, nem no futuro nenhum de nós deixará de existir!
GUARDA CARIOCA
(Já reallizou o seu massacre/ ao Profeta) Cala boca maluco!
PROFETA IOKANAAN
Ai, como é estranho que estejamos nos preparando para cometer atos extremamentes pecaminosos, impulsionados pelo desejo de gozar a felicidade régia! (A Guarda metralha para o ar e entra no palácio) Da ira surge a ilusão, e da ilusão, confusão da mente e quando a mente se confunde, se perde a inteligência e quando a inteligência se perde, cai-se...cai-se no poço material!
(Um canto operístico, toma conta da cena, no palco, a Ama de Salomé, a banha enquanto canta, o banho é como um batismo, um ritual com várias escravas coreografadas, cantando em coro)
MUSICA/ OPERA: Encantamento
AMA
Abolida a asa atrós nas lágrimas cadentes
Do espelho a refletir, abolido , os repentes
De ouros nus fustigando o espaço de rubis,
Eis que uma aurora, heráldica plumagem, quis
Fazer de nossa torre cinerária o nicho,
Tumba de que fugiu um pássaro, capricho
Solitário de aurora às negras plumas do ar...
Ah, mausoléu de reinos tristes a findar!
Nenhuma turbação! A água morna e sem tisne
Resigina-se a não ver a pluma nem o cisne
Inovidável: a água só reflete o exílio
Do outono que extinguiu no espelho o fogo e o brilho:
Do cisne que por entre a lápide gelada
Ou a pluma afundou o colo, desolada
Pelo diamante puro de uma estrela, a qual
Não cintilou jamais seu furor ancestral.
Crime! Fogueira! Aurora original! Suplício!
Rubis do céu! Rubis revérberos de vício!
Sobre a vermelhidão,todo aberto, o vitral.


O quarto singular no seu quadro, arsenal
De século guerreiro, artesania extinta,
Tem a neve de outrora para a antiga tinta,
Sua tapeçaria em lustre nácar, pregas
Inúteis sob o olhar de olhos sepultos, cegas
Sicilas a ofertar a úngula longa aos magos.
Uma delas, com ramos de remotos pagos
Sobre meu alvo manto e seu marfim calado
Ao céu de pássaros em pratas negra alado,
Parece revoar fantasma furta-cor,
Um olor que transporta, ó rosas! Um olor
Longe do leito vago, oculto à vela escassa,
Um olor de ouros frios a se evolar da taça,
Uma efusão de flores infiéis à lua
(Junto ao círio expirante uma se esfolha nua)
Das quais o longo adeus e as hastes outonais
Molham em um só vidro os lânguidos fanais.
Uma aurora arrastavam em lágrimas as alas!


Espectro especular de simbólicas galas!
Uma voz do passado em longo pensamento,
É a minha, já prestes ao encantamento?
Nas pregas do pensar, amarelas ainda,
Vogando antiga, estrela incensada que finda
Sobre um confuso caos de custódias geladas,
Por fendas ancestrais e pregas transpassadas
De frialgem segundo o ritmo e as rendas puras
Do sudário a deixar dentre as belas guipuras
Desesperado alçar-se o velho ardor velado
Se eleva: ( ó quão longíquo em seu clamor selado! )
O velho ardor velado de um vermelho insólito,
Da voz enlanguescente, nula, sem acólito,
Derramará seu ouro em derradeiros fogos,
A antífona a entoar o cantochão dos rogos
Na hora da agonia e das fúnebres lutas!
E, força do silêncio e trevas absolutas,
Tudo retorna igual ao antigo passado
Fatídico, vencido, apático, cansado,
Como a água de antigos tanques se resigna.


Ela cantou, talvez incoerente, signo
Lamentável!
o leito em papel pergaminho,
Tal, inútil e tão claustral, nem mesmo o linho!
Que entre as pregas perdeu dos sonhos a grafia,
E o dossel sepúlcral, na câmara vazia,
O aroma dos cabelos soltos. Ele o tinha?
Fria infante que o seu prazer sutíl continha
De caminhar ao fluir das flores das manhãs
E quandp a noite má já cortara as romãs!
A meia lua, sim,no mostrador imenso
Do relógio que pesa um lucifer suspenso,
Não cessa de ferir a cada nova hora
Da clepsidra onde a gota anônima deplora
Que ela se vá, errante, e em sua sombra nem
Um anjo a acompanhar seu passo de ninguém!
O rei que assalaria desconhece tudo
Há muito tempo o verbo antigo se fez mudo.
Seu pai ignora tudo e até o furor glacial
Da geleira a mirar das armas o metal,
Quando sobre o estendal dos mortos sem coberta
Rescendendo a resina, enigmáticoo, oferta
Trompas de prata obscura aos velhos pinheirais!
Do reino cisalpino há de voltar jamais?
Cedo demais? Tudo é presságio e tudo é treva!
A unha, que por entre esses vitrais se eleva
Consoante o evocar das trompas, o alquebrado
Céu incandescente e faz de um dedo om círio irado.
E logo o seu rubor de crepúsculo triste
Penetrará na carne a cêra que resiste!
De crepúsculo, não, mas rubro dealbar
Do último dia que há de vir tudo acabar,
Tão triste se debate que já apaga a hora
O rubor da estação profética que chora
A virgem exilada em sua própria imagem,
Como um cisne que esconde os olhos na plumagem
Como os pusera o velho clisne à pluma, vôo
Da pluma desconsolo no imortal revôo
De esperanças por ver os diamantes finais
De esperanças por ver os diamantes finais
De uma estrela morrente e que não brilha mais.


AMA
(Junto com as escravas, banha Salomé) Vives! Ou vejo só uma sombra de princesa?
A meus lábios teus dedos e anéis. Pobre presa,
Cessa de caminhar para o ignoto...
SALOMé HERODIAS
Recua.
Que o louro rio dos meus cabelos virgens flua:
Quando banha meu corpo solitário, o gela
De horror, e meus cabelos que a luz vela
São imortais. Mulher, um beijo, e eu morreria
Se a pureza não fosse a morte...
Que magia me induz e que manhã dos deuses esquecida
Verte em distâncias mortas seu festim sem vida,
Que sei eu? Tu me viste, ó minha alma hibernal,
Sobre a grave prisão de pedras e de metal
Dos meus leões que arrastam as ferozes eras
Entrar, fatal, e caminhar por entre as feras
No perfume deserto desses reis antigos:
Mas que sabes dos meus terrores e perigos?
Detenho-me a sonhar nos exílios e esfolho,
Como ante o jato de uma fonte em que me olho,
Os lírios pálidos que há em mim, enquanto atentos
A seguir com o olhar os lânguidos fragmentos,
Descendo, aem meio ao sonho, em silêncio, contidos,
Os leões, da indolência apartam meus vestidos
E contemplam meus pés que amansariam mares.
Convém, pois, tua carne trêmula acalmares;
Vem, Ama, e o meu cabelo imitando as maneiras
Que açulam teu horror de hisurtas cabeleiras,
Já que não ousas contemplar-me frente a frente,
Ajuda-me ante o espelho, a pentear molemente.
AMA
Antes que a mirra alegre em urnas olorosas,
De uma essência roubada à velhice das rosas
Não queres aspirar então a placidez
Fúnebre?
SALOME HERODIAS
Deixa em paz os perfumes! Não vês,
Ama, que eu os odeio, e queres que eu esqueça
Na sua embriaguez a lânguida cabeça?
Os meus cabelos, que não são flores amenas
A difundir o olvido das humans penas,
Mas ouro, para sempre virginal de olores,
Em seus clarões cruéis e pálidos fulgores,
Observam a frieza estéril do metal,
A refletir-vos,jóias do muro natal,
Armas, vasos que herdei, sozinha desde o início.
AMA
Perdão, rainha, já olvidava o teu cilício
Meu ser fanado como um livro escuro ou velho...
SALOME HERODIAS
Basta! Sustém diante de mim o espelho.
Ó espelho!
Água fria de tédio em teu quadro gelada,
Quantas vezes, perdidas horas, desolada
De sonhos, entre as vãs memórias que procuro
Como folhas sob o teu vidro oco e obscuro,
Pousei em ti como uma sombra fugidia,
Porém... horror!... à noite, em tua fonte fria,
Do meu sonho disperso eu vi toda a nudez!
Ama, tu me achas bela?
AMA
Um astro, se me crês,
Mas essa trança cai...
SALOME HERODIAS
Detém esse teu crime
Que congela meu sangue dentro de mim, reprime
Teu gesto de impiedade: ah, mas enfim, me diz
Que demônio inspirou teu ânimo infeliz.
Esse beijo, esses perfumes e segredos,
Ó coração! E o sacrilégio desses dedos,
Pois ias quase me tocar, são esse dia
Que não vai terminar sem a minha agonia...
Ó dia que Herodias com temor deseja!
AMA
Tempo bizarro, sim, de que o céu te proteja!
Caminhas, sombra só, e nova em teu furor,
Absorta no teu ser precoce de terror;
Mas adorável sempre, como uma imortal,
Ó minha filha, horrivelmente bela e tal
Que eu só...
SALOME HERODIAS
Mas tu não ias me tocar?
AMA
...Queria
Ser esse a quem teus dons dará o destino um dia.
SALOME HERODIAS
oh! Cala-te!
AMA
Virá, talvez?
SALOME HERODIAS
Estrelas puras,
Não escuteis!
AMA
Como, senão por entre obscuras
Perturbações, pensar com mais desdouro
E como suplicante o Deus que esse tesouro
De tua graça espera! E para quem toldada
De angústias, guardarás a riqueza ignorada
E o vão mistério do teu ser?
SALOME HERODIAS
só para mim.
AMA
Triste flor solitária sem ter outro fim
Que sua sombra nágua vista em atonia.
SALOME HERODIAS
Dispenso a compaixão, assim como a ironia.
AMA
Explica-me, contudo: oh! não, pobre menina,
Um dia esse desdém magnífico declina.
SALOME HERODIAS
Mas quem me tocará, se até os leões eu domo?
Nada quero de humano e se me avistas como
Escultura a sonhar um paraíso agora,
É que me recordei do teu leite de outrora.
AMA
Vítima lamentável ao destino oferta!
SALOME HERODIAS
Sim, é só para mim que eu floresço, deserta!
Vós sabeis, jardins de ametista, enterrados
Nos abismos sem fim, sabiamente cerrados,
Ouros ignotos a guardar a chama viva
Sob o sono malsão da terra primitiva,
Vós, pedras de onde os olhos meus como diamantes
Roubam a musical clareza, e vós, brilhantes
Metais que produzis em meu cabelo o corte
De um esplendor fatal e seu mascivo porte!
Mas tu, mulher que vens dos séculos mofinos
Para a malignidade de antros sibilinos,
Que fala de castidade,
Noite branca de gelo e de neve fatal!
Sóror da solidão, ó irmã imortal,
Meu sonho há de ascender para ti: como agora,
Na rara limpidez de uma alma que o implora,
Me vejo só em minha pátria morta e fria
E tudo ao meu redor vive na idolatria
Do espelho que reflete em sua calma estante
Herodias de claro olhar de diamante,
Supremo encanto, sim! eu o sinto, estou só.
AMA
Senhora, então ireis morrer?
SALOME HERODIAS
Não, pobre avó:
Acalma-te e perdoa um coração sem mel,
Mas antes de seguir, cerra a janela, o céu
Azul sorri nesses vitrais que sondas,
Eu, no entanto, abomino o belo azul!
As ondas
Se embalam e, quem sabe, adiante, haja um lugar
Onde o sinistro céu tenha o odiado olhar
De vênus a queimar, à noite, em meio á flora:
Eu partirei.
Acende, criancice embora,
Os fachos onde a cera em seu fogo ligeiro
Chora entre o ouro vão algum choro estrangeiro.
E...
AMA
Agora?
SALOME HERODIAS
Adeus.( Sai levando a luz, saem as escravas, Salomé fica só)
Mentes, ó flor nua a sorrir
De meus lábios. (Chora)
Espero o ignoto do porvir,
Ou talvez, ignorando o mistério e teus gritos,
Desata esses soluços últimos e aflitos
De uma infância que vê das fantasmagorias
Separem-se enfim as frias pedrarias.
PAJEM de HERODÍADE, a ÍNDIA
( Está tocando a música " Cidade Maravilhosa ", saindo do palácio, e entrando no ambiente externo, a ÍNDIA PAJEM de HERODÍADE e a CHEFE da GUARDA, vão fazer a ronda, elas trazem tochas de fogo nas mãos. )
A rainha Herodíade e o Bispo Tijelino, cruzes! Mulher que prevarica com padre vira mula sem cabeça! ( apontando para uma das aves empalhadas do cenário, com uma tristeza de quem no exílio encontra um compatriota ) Olhe! É uma saracura! Ela anuncia o tempo seco. Quando o caboclo ouve a sua onomatopéia:( imita corporalmente ) Três potes! três potes! três potes! três potes! três potes! três potes! Já sabe que não vai chover... já no sul, ela anuncia chuva... (outra ave ) esta aqui é a acauã é uma ave malfazeja, encanta os caboclos obrigando-os a chocarem pedras... ( saudoso ) quando escutávamos barulho nas árvores, dizíamos: É o curupira que está batendo nas sapopemas das árvores para ver se elas resistem à tempestade que vem... ( apontando outra ave ) esta é o urutaí, também chamada Mãe da Lua, é uma ave com atributo mítico, afirmam que sua pele sêca, defende a virgindade das moças... costumam ainda, varrer o chão sobre o qual estão as redes dos recém casados com a cauda do urutaí, dá sorte... que saudades da minha terra! Tinha também a teinanguá, uma lagarticha fabulosa que trazia na cabeça uma preciosa pedra que cintilava como braza e era cor de rubi. Nunca a puderam apanhar, nem viva, nem morta, porque suas irradiações desviam os olhos e mãos dos perseguidores...Ah! como eu gostaria de ser um teinanguá... ( escutam a música do baile ). Nós tínhamos uma festa, que era a pajelança, era uma festa maravilhosa, ao sons de maracás e no meio da fumaça das baforadas do cigarro tavari que o pajé fumava durante as cerimônias e da defumação que era obrigatória , o curandeiro...
CHEFE da GUARDA
O sacerdote?
PAJEM de HERODÍADE, a ÍNDIA
é, o mágico... Ele fazia rezas para limpar, receitava puçanga, uma beberragem de ervas silvestres cujas propriedades só êle conhecia, e para estas manifestações, ele invocava os caruanas, entidades sobrenaturais, tidas como a alma dos mortos para auxiliar os vivos...
OS DOIS
Bons tempos... Nós éramos livres...
CHEFE da GUARDA
Que saudades...da minha terra, da minha gente!
É a terra de Maomé, o profeta pertencia a tribo de Meca, cuja divindade era uma famosa pedra negra, era um fragmento de lava ou de basalto. O corão ou alcorão, é a nossa lei, foi transmitido ao profeta Maomé através de uma revelaçÀo... Admite-se a existência de anjo e demônios,bem como a necessidade de um julgamento final, que acordo com os méritos de cada um, fará participar a criatura das venturas do paraíso ou a condenará aos padecimentos do inferno. Mas o corão não se limita a ditar o ato de fé... além de prescrever os deveres para com Deus, ele determina ainda normas precisas para a maioria dos atos da vida cotidiana individuais, sobre a família e a sociedade. Admite a poligamia limitada a quatro esposas! E a dissolução do casamento pode ser provocada por um simples repúdio do marido... cinco precces são obrigatórias diariamente, a da madrugada, a do meio dia, a do meio da tarde, a do por do sol e a da noite. É exigido que façamos a oração colocados na direção de meca.
A PAGEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
E o que você pede quando reza?
CHEFE DA GUARDA
A prece é um ato de adoração, e seria inconviniente dirigir um pedido... Antes da adoração é preciso se purificar por meio de abluções na cabeça, no rosto, nas mãos, nos braços ou nos pés, com água pura ou areia. A minha religião, prga a submissão a Deus. Eu tenho noção, consciência da dependência integral do homem em face de um poder supremo e ilimitado e é a ele que devemos nos entregar abdicando de qualquer iniciativa própria (ajoelha-se). " Só Aláh é Deus e Maomé é seu profeta " (abaixa-se).
A GUARDA CARIOCA
( Chegando pelo outro lado, cantando e sambando/ Por trás a corte se ilumina, todos cantam a mesma música. O baile começa ).
Aláh! Aláh!Aláh! Meu bom Aláh!
Mande água pra iôiô, mande água prá iáiá,
Alah! Meu bom Aláh....
Alá-lá-ô,ô ô ô ô ô ô, mas que calor ô ô ô ô ô ô,
Atravessando o deserto do Sahara,
O sol estava quenter e queimou a nossa cara,
Alá-lá-ô, ô ô ô ô ô ô, Mas que calor, ô ô ô ô ô ô
(Terraço / O Profeta está preso no alto, por cima do pântano, entram o Pastor Capadócio e o Pai de Santo Gay, suados e descabelados)
CHEFE DA GUARDA
Como é pura, assim, à noite a princesa Salomé!
A PAJEM DE HERODÍADE , A ÍNDIA
Olha para a lua! Vê como está estranha! Parece uma mulher erguendo-se do túmulo, uma mulher morta; é como se toda ela se voltasse para a contemplação das coisas mortas.
CHEFE DA GUARDA
A lua tem um estranho olhar. É tal qual a pequena princesa que traz um véu amarelo e cujos pés são de prata; é tal qual a princesa cujos pés parecem duas pombas brancas.
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
A lua parece uma mulher morta. Move-se tão vagarosamente...
(Rumor dentro da sala dos banquetes)
A GUARDA CARIOCA
Oh! Que barulho! Que bichos selvagens são aqueles para rugir assim?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
São os religiosos, e assim sempre estão. Discutem religião.
A GUARDA CARIOCA
E por que eles discutem isso ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Não posso te dizer. É costume. Tem uns, por exemplo, que dizem que há anjos, e os outros, afirmam que os anjos não existem.
A GUARDA CARIOCA
É ridículo discutir futilidades destas.
CHEFE DA GUARDA
Como é pura à noite, a princesa Salomé!
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Estás sempre a olhar para ela. Olhas demais. É perigoso olhá-la assim em público. Pode acontecer qualquer coisa horrível.
CHEFE DA GUARDA
É tão pura!
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
O Tetrarca tem um ar sombrio.
O PASTOR CAPÁDOCIO
E fixa os olhos em alguma coisa.
O PAI DE SANTO GAY
Sim, está observando alguém. Quem ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Não posso te dizer.
CHEFE DA GUARDA
Como está pálida a princesa! Nunca a vi tão pálida. Parece o reflexo de uma rosa branco num espelho de prata.
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Estás a olhá-la demais. Não a olhes tanto.
A GUARDA CARIOCA
Herodíade encheu a taça do Tetrarca.
O PASTOR CAPÁDOCIO
A rainha Herodíade é aquela que traz uma mitra negra, semeada de pérolas, e tem o cabelo polvilhado de azul?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Sim, é aquela, a mulher do Tetrarca, Herodíade.
A GUARDA CARIOCA
O Tetrarca, este gosta muito de vinho. Tem sempre três qualidades de vinho. Trouxe o primeiro da ilha de Samotrácia. É um vinho púrpureo como o manto dos papas.
O PASTOR CAPÁDOCIO
Nunca vi um papa.
A GUARDA CARIOCA
Veio o outro de uma cidade chamada Ciprus e é amarelo como o oiro.
O PASTOR CAPADÓCIO
Eu amo o oiro.
A GUARDA CARIOCA
O terceiro é um vinho de Sicília, vermelho como o sangue.
O PAI DE SANTO GAY
Os deuses da minha terra gostam muito de sangue. Duas vezes ao ano saccrificamos-lhes crianças e virgens, cinquenta crianças e cem virgens. Mas creio que não lhes basta. Os deuses são tremendamente maus!
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Os da minha terra, já não eram muitos, e os civilizados tem acabado com o resto. Há quem diga que eles fugiram para a montanha. Não creio. Três noites fui ao monte vê-los e nada vi. Cheguei por fim a chamá-los pelos nomes. Não responderam. Morreram, não há o que ver.
A GUARDA CARIOCA
Tem uns que adoram um Deus que nem todos podem ver.
O PAI DE SANTO GAY
É lá possível compreender um Deus assim ?
A GUARDA CARIOCA
Mas é verdade, só acreditam numa coisa que ninguém vê.
O PAI DE SANTO GAY
Parece extravagante e ridículo.
A VOZ DE IOKANAAN, O PROFETA
Após mim, virá outro mais pderoso, tão poderoso, tão poderoso que indigno eu sou de lhe desapertar os cordões das sandálias. Quando chegar, os sítios desertos se alegrarão e florescerão como as rosas; os olhos dos cegos verão o dia, os ouvidos dos surdos ouvirão, as criancinhas de mama curvarão a cerviz aos dragões e ele conduzirá os leões chamando-os pelos nomes.
A GUARDA CARIOCA
Cale-se!! Está sempre a dizer coisas estúpidas.
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Não, não. É um santo homem, um homem delicado. Sempre que lhe levo a comida, agradece-me.
O PASTOR CAPADÓCIO
Quem é ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Um profeta.
O PASTOR CAPADÓCIO
Como se chama ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Iokanaan.
O PAI DE SANTO GAY
De onde vem ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Do deserto, onde comia gafanhotos e mel silvestre. Andava coberto de peles de camelo, com um cinto de couro em torno aos rins. Assustava vê-lo. Acompanha-o sempre uma grande multidão... É um profeta que tem discípulos.
O PASTOR CAPADÓCIO
Que diz ele ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Não posso te repetir. Diz muitas vêzes, coisas que assustam, mas é impossível compreendê-lo.
O PAI DE SANTO GAY
E vê-lo ?
A GUARDA CARIOCA
Não, também não. O Tetrarca proíbe.
CHEFE DA GUARDA
A princesa oculta a face por trás do leque! As suas pequenas e brancas mãos esvoaçam como pombas que voam para os pombais; Parecem duas borboletas brancas, são tal qual duas borboletas brancas!
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Que estás dizendo. Ainda a contemplas? Não deves olhá-la. Pode acontecer alguma desgraça.
O PAI DE SANTO GAY
Que estranha prisão!
A GUARDA CARIOCA
É uma velha cisterna.
O PASTOR CAPADÓCIO
Uma velha cisterna! Como se fosse possível habitar esse empestado lugar!
A GUARDA CARIOCA
Oh! Não insistas. O irmão do Tetrarca, o irmão mais velho, o primeiro marido da rainha Herodíade, esteve preso lá dentro cerca de doze anos. Ao cabo desse tempo estrangularam-no.
O PAI DE SANTO GAY
Estrangularam-no? Quem ousou?
A GUARDA CARIOCA
(Apontando o Executor) Aquele homem, Naaman.
O PASTOR CAPADÓCIO
E não teve medo ?
A GUARDA CARIOCA
Oh! Não . O Tetrarca mandou-lhe o anel.
O PASTOR CAPADÓCIO E O PAI DE SANTO GAY
Que anel ?
A GUARDA CARIOCA
O anel da morte. Também ele não teve medo.
O PASTOR CAPADÓCIO
Entretanto não deixa de ser terrível estrangular um rei.
A GUARDA CARIOCA
Por que? Os reis têm pescoço como qualquer um de nós (ri).
O PAI DE SANTO GAY
Mas deve ser horrível.
CHEFE DA GUARDA
A princesa levanta-se, já se levantou da mesa. Parece perturbada, ah! vem prá cá. Sim, caminha ao nosso encontro; como está pálida! Nunca a vi tão pálida.
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Peço-te. Não olhes assim a princesa.
CHEFE DA GUARDA
Parece uma pomba perdida... É como um narciso tremendo ao vento... é como uma flor de prata.
SALOMÉ HERODIAS
(Entrando no terraço) Não ficarei; Não posso ficar. Por que me olha o Tetrarca com aquele olhar vermelho sob as sombrancelhas convulsas? É estranho que o marido de minha mãe olhe assim para mim... Não sei o que pensar
CHEFE DA GUARDA
Abandonaste o festim princesa?
SALOMÉ HERODIAS
Como é fino aqui o ar! Já posso respirar. Estão lá dentro os judeus que se engalfinham a propósito das tolas cerimônias da sua religião., bárbaros a beber entornam o vinho no chão, gregos de smirna com os olhos e as faces pintadas, tendo os cabelos enrolados em altas tranças, egipcíos silenciosos e sutis com longos turbantes de jade e mantos escuros,romanos brutais e grosseiros a discutir na sua extravagante algaravia. Ah! como eu detesto os romanos... São vulgares, são grosseiros e dão-se ares de nobres senhores.
CHEFE DA GUARDA
Senta-te princesa.
APAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Por que lhe falas? Oh! Vai acontecer uma grande desgraça.
SALOMÉ HERODIAS
Como é bom ver a lua! Parece uma pequena moeda de oiro, uma florzinha de prata. A lua é fria e casta. Estou certa que é virgem. Tem a beleza das virgens, sim, é virgem... nunca se corrompeu! Nunca se entregou aos homens, como as outras deusas.
A VOZ DE IOKANAAN, O PROFETA
Cuidado! Vai chegar o Deus! Está próximo o Filho do Homem. Os centauros ocultam-se nos rios e as ninfas,deixando os ribeiros deitam-se nas florestas.
SALOMÉ HERODIAS
Quem está gritando ?
A GUARDA CARIOCA
O Profeta, princesa.
SALOMÉ HERODIAS
Ah! O profeta que o Tetrarca teme?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Nada sabemos a respeito. Foio o profeta Iokanaan que gritou.
CHEFE DA GUARDA
É do teu agrado que mande trazer o leito,princesa? A noite está linda.
SALOMÉ HERODIAS
Ele diz coisas terríveis de minha mãe, não diz ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Não entendemos o que ele diz, princesa.
SALOMÉ HERODIAS
Pois diz, diz coisas terríveis.
AMA
(Entrando) Princesa, o Tetrarca pede que voltes ao festim.
SALOMÉ HERODIAS
Não volto.
CHEFE DA GUARDA
Perdoa-me princesa, mas se não voltares, talvez se dê uma grande desgraça.
SALOMÉ HERODIAS
O Profeta é velho ?
CHEFE DA GUARDA
Princesa, é melhor voltar. Permite que te acompanhe até lá.
SALOMÉ HERODIAS
O Profeta ... é velho ?
A GUARDA CARIOCA
Não, princesa, é moço.
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Não se sabe ao certo. Há quem diga até que é Elias.
SALOMÉ HERODIAS
Elias ?
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Um profeta antigo, princesa.
AMA
Que resposta darei ao Tetrarca ?
A VOZ DE IOKANAAN, O PROFETA
Não te regosijes, ó terra, só porque se quebrou a vara com que te castigava. A serpente sairá e quando sair devorará os pássaros.
SALOMÉ HERODIAS
Que estranha voz! Seria capaz de falar-lhe.
A GUARDA CARIOCA
Sinto muito, princesa, mas é impossível. O Tetrarca não permite que ninguém lhe fale. proibiu até o grande sacerdote.
SALOMÉ HERODIAS
Desejo falar-lhe.
A GUARDA CARIOCA
É impossível, princesa.
SALOMÉ HERODIAS
Quero.
CHEFE DA GUARDA
Não seria melhor voltar ao banquete?
SALOMÉ HERODIAS
Traga a minha presença esse profeta!
( A Ama sai )
A GUARDA CARIOCA
Não me atrevo, princesa.
SALOMÉ HERODIAS
( Aproximando-se da prisão ) Como é escuro lá dentro. Deve ser horrível viver nesse negro buraco. É como um túmulo... Não ouviu ? Traga o Profeta. Quero vê-lo.
A GUARDA CARIOCA
Princesa, suplico, não exijas isso de mim.
SALOMÉ HERODIAS
Estou quase a depender da sua vontade!
A GUARDA CARIOCA
Princesa, pertence-te a minha vida, mas não posso fazer o que mandas. Não é a mim que deves pedir.
SALOMÉ HERODIAS
( Olhando para a Chefe da Guarda ) Ah!
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Oh! O que vai se dar! Estou certo que vai acontecer alguma coisa de horrível!
SALOMÉ HERODIAS
( Ao Chefe da guarda ) És tu que vais me fazer a vontade, não. És tu, sim. Tenho sido sempre tão boa! És tu, não? Eu quero apenas ver o estranho Profeta. Falam tanto dele! Muitas vezes tenho ouvido o Tetrarca e julgo até que o teme. Tu mesmo também o temes. Não.
CHEFE DA GUARDA
Não, princesa, não há homem que eu tema. O Tetrarca, porém, terminantemente proibiu que se levantasse a coberta do poço.
SALOMÉ HERODIAS
Vais levantá-la, e amanhã quando eu passar de palanquim, pelo caminho dos vendedores de ídolos, te deixarei cair uma pequena flor, uma florzinha verde.
CHEFE DA GUARDA
Princesa, não posso, não posso!
SALOMÉ HERODIAS
( Risonha ) Faz-me a vontade... Tu bem sabes que me vais fazer a vontade... e amanhã, quando passar no palanquim pela ponte dos compradores de ídolos, te olharei através do meu véu de musselina amarela, te olharei, e pode ser que sorria. Olha-me, olha-me. Ah! Tu bem sabes que vais fazer o que eu te peço! Bem sabes... Tenho certeza que sabes...
CHEFE DA GUARDA
( Para a guarda ) Faz o Profeta sair... A princesa Salomé Herodias deseja vê-lo.
SALOMÉ HERODIAS
Ah!
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Oh! Que lua estranha! Parece a mão de uma mulher morta procurando cobrir-se com o sudário.
CHEFE DA GUARDA
Ela tem um estranho ar; é como uma princesinha cujos olhos fossem de Âmbar. Através da nuvem de musselina está a sorrir como uma princesinha.
( O Profeta aparece, Salomé Herodias olha-o vagarosamente).

IOKANAAN, O PROFETA
Onde está esse cuja taça de abominações já transborda? Onde está esse que há de morrer com uma túnica de prata em presença do povo? Mandou que eu saísse porque pode ouvir aquele cujos gritos repercutem nas praças públicas como nos palácios reais?
SALOMÉ HERODIAS
De quem fala?
CHEFE DA GUARDA
Ninguém o pode dizer, princesa.
IOKANAAN, O PROFETA
Onde está essa que viu figuras de homens pintadas nas paredes, as imagens coloridas dos Caldeus, onde está essa que aos seus dá a sua própria luxúria e manda os embaixadores à terra da Caldéia?
SALOMÉ HERODIAS
É de minha mãe que ele fala.
CHEFE DA GUARDA
OH! Não princesa.
SALOMÉ HERODIAS
Sim, é de minha mãe.
IOKANAAN, O PROFETA
Onde está essa mulher que se entrega aos capitães da Assíria, que os rins cinge de cintos e os cabelos colore de várias cores? Onde pára essa criatura que se prostitui aos moços egípcios, cujas túnicas são de belo linho e jacintos, cujos broquéis são de oiro, que têm, para coroar os corpos vigorosos, elmos de prata? Vai, ordena-lhe que se levante do leito das abominações, do leito dos incestos para ouvir as palavras daquele que abre o caminho do Senhor. É tempo de arrependimento das iniquidades. Ela não se arrependerá. Antes, cada vez mais mergulhará na abominação. Vai ordena-lhe que venha buscar a paz de Deus na sua própria mão!
SALOMÉ HERODIAS
Ah! É terrível! É terrível!
CHEFE DA GUARDA
Não fiques mais aqui, suplico-te, princesa.
SALOMÉ HERODIAS
São terríveis seus olhos. Parecem as negras cavernas incendiadas pelas tochas das tapeçarias de Tiro; lembram os antros escuros onde vivem os dragões, as atras cavernas do Egito de que os dragões fazem covis; assemelham-se a dois lagos escuros perturbados por fantásticos luares... Julgas que me responderá?
CHEFE DA GUARDA
Não fiques mais aqui, suplico-te, não fiques mais!
SALOMÉ HERODIAS
Como é branco! É como uma estátua de marfim, como uma imagem de prata. Estou certa de que é casto como a lua. Parece um raio de luar, parece uma seta de prata. A sua carne deve ser muito fria, fria como o marfim... Devo falar-lhe.
CHEFE DA GUARDA
Não, não princesa!
SALOMÉ HERODIAS
Devo sim!
CHEFE DA GUARDA
Princesa! Princesa!
IOKANAAM, O PROFETA
Quem é essa mulher que tanto olha para mim? Não queria os olhos seus sobre os meus olhos postos. Com que fim suas douiradas pupilas movem-se docemente sob as pálpebras não deixando os meus passos? Não sei quem é, nem quero saber. Ordena-lhe que saia. Não é a ela que desejo falar.
SALOMÉ HERODIAS
Eu sou a princesa Salomé Herodias, filha de Herodíade.
IOKANAAM, O PROFETA
Para trás filha de Babilônia! Não te aproximes do escolhido do Senhor! Tua mãe empapou a terra com o vinho dos seus deboches e o clamor do passado já chegou aos ouvidos de Deus.
SALOMÉ HERODIAS
Fala mais, Iokanaam. Tua voz é para os meus ouvidos uma estranha música.
CHEFE DA GUARDA
Princesa! Princesa! Princesa!
SALOMÉ HERODIAS
Fala ainda, fala! Iokanaam... Me diz o que devo fazer.
IOKANAAM, O PROFETA
Filha de Sodoma, não te aproximes. Cobre a face com um véu, derrama cinzas na cabeça, vai para o deserto, procura o Filho do Homem!
SALOMÉ HERODIAS
Quem é o Filho do Homem? É tão belo como tu és?
IOKANAAM, O PROFETA
Tira-te da m inha presença! Ouço no palácio o rumor das asas do anjo da morte.
CHEFE DA GUARDA
Princesa, imploro-te: sai!
IOKANAAM, O PROFETA
Anjo do Senhor, que fazes aqui com tua espada? A quem procuras neste palácio? O dia em que ele há de morrer ainda não chegou.
SALOMÉ HERODIAS
Iokanaan!
IOKANAAN, O PROFETA
Quem fala?
SALOMÉ HERODIAS
Amo o teu corpo, Iokanaam. O teu é branco como os lírios da campina que o ceifeiro nunca ceifou; o teu corpo é alvo como a neve das montanhas da Judéia escorrendo dos altos píncaros. As rosas do jardim da Rainha da Arábia não são tão brancas. Nem as rosas do jardim da Rainha da Arábia, os jardins dos adulos, nem o albor da auror quando sobre as folhas brilha, nem os raios da lua quando se espalham no seio do mar... Não há nada no mundo tão branco como o teu corpo. Deixa que eu toque o teu corpo.
IOKANAAM, O PROFETA
Para trás, filha da Babilônia. Não me fales, porque não te escutarei. Eu só ouço a voz do Senhor.
SALOMÉ HERODIAS
É hediondo o teu corpo. Parece o corpo de um leproso, um muro caiado por onde se tivessem arrastado víboras, uma parede onde os escorpiões vivem, um esbranquiçado sepulcro cheio de coisas horríveis. É hediondo, é hediondo!... O teu cabelo porém apaixona-me. Oh! Esses cabelos parecem cachos de uva, os cachos de uva negra que pendem da videira do Edom, na terra dos Edomitas. Lembro-me dos cedros do Líbano, dos grandes cedros do Líbano que dão sombra aos leões e escondem os ladrões durante o dia, quando olho os teus cabelos. As longas noites escuras, quando a lua esconde a face e as estrêlas têm medo, não são tão negras como o teu cabelo, nem o atro silêncio que mora na floresta se lhe pode comparar. Deixa pegar os teus cabelos.
IOKANAAM, o PROFETA
Para trás, filha de Sodoma! Não me toques, não profanes o templo de Deus!
SALOMÉ HERODIAS
Oh! o teu cabelo é horrível. Está coberto de lama e pó. Recorda uma coroa de espinhos no alto da tua cabeça, e um laço de serpentes em torno do teu pescoço.Não o amo... É tua boca que eu desejo, Iokanaam. A tua boca é como um tope rubro numa torre de marfim, é como uma romã aberta com uma faca de elefantino. As flores da romã, que florescem nos jardins de Tiro e são mais vermelhas que as rosas, não são tão vermelhas. Os rubros sons das trombetas que anunciam a aproximação dos reis e aterrorizam o inimigo não são tão vermelhos.A tua boca é mais rubra que os pés dos que machucam uvas nos lagares; mais vermelha que os pés dos pombos que habitam os templos e são cuidados pelos sacerdotes, mais purpurina que os pés do caçador que na floresta matou um leão e viu os tigres doirados. Oh! essa boca parece um ramo de coral achado no fundo do mar e que os pescadores guardam para os reis, lembra o vermelhão que os Moabitas acham nas minas de Moab e para os reis também guardam, recorda o arco dos reis dos Persas que é pintado de vermelho e incrustado de coral. Não há nada no mundo mais rubro que a tua boca... Deixa que eu a beije, Iokanaam.
IOKANAAM, o PROFETA
Nunca! Filha da Babilônia! Filha de Sodoma! Nunca!
SALOMÉ HERODIAS
Quero beijar tua boca, Iokanaam, quero beijá-la.
CHEFE da GUARDA
Princesa, princesa, tu que tens um jardim de mirra, tu que tens o pombo de todos os pombos, não olhes assim para este homem... Não o olhes! Não lhe digas tais coisas. Doi-me tanto! Princesa, não lhe fales.
SALOMÉ HERODIAS
Quero beijar a tua boca, Iokanaam.
CHEFE DA GUARDA
( mata-se e cai entre Salomé e Iokanaam )
Ah!
PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Matou-se a moça, a jovem capitã, matou-se a minha amiga. Dera-lhe um escrínio de perfumes e bugingangas de prata e ela matou-se. Ah! não estava eu adivinhando a desgraça? Bem sabia o que havia de acontecer, bem vi que a lua procurava a morte; mas não me lembrou que fosse a morte da minha amiga. Porque não a escondi da lua? Se a tivesse oculto numa caverna a lua não a teria visto...
A GUARDA CARIOCA
Princesa, a moça capitã acaba de suicidar-se.
SALOMÉ HERODIAS
Deixa beijar a tua boca, Iokanaan!
IOKANAAN , O PROFETA
Não tens medo, filha de Herodíade? Não disse que no palácio ouvira o rumor das asas do anjo da morte! Não veio o anjo?
SALOMÉ HERODIAS
Deixa beijar tua boca, Iokanaan!
IOKANAAM, O PROFETA
Filha do adúltério, ninguém mais te poderá salvar senão aquele de quem falo. Vai vê-lo. Anda num barco, no mar aberto, e conversa com os díscípulos. Ajoelha à beira d'água, chama-o pelo seu nome. Quando ele vier, pois a todos atende, lança-te a seus pés e pede-lhe a remissão dos teus pecados.
SALOMÉ HERODIAS
Deixa beijar a tua boca, Iokanaan!
IOKANAAN, O PROFETA
Amaldiçoada sejas, filha de mãe incestuosa! Maldição!
SALOMÉ HERODIAS
Quero beijar a tua boca, Iokanaan!
IOKANAAN, O PROFETA
Não te quero ver. Estás amaldiçoada, Salomé, estás amaldiçoada! ( Foge para a prisão )
SALOMÉ HERODIAS
Quero beijar a tua boca, Iokanaan! Quero beijar a tua boca!
O PASTOR CAPADÓCIO
Precisamos levar o corpo para outro lugar. O tetrarca não gosta de ver senão os corpos que ele mesmo matou.
A PAJEM DE HERODÍADE, A ÍNDIA
Mais ligados éramos que irmãos. Dei-lhe um escrínio cheio de perfumes e um anel de ágata, que sempre trazia no dedo. Esta tarde, como habitualmente, fomos dar um passeio à beira do rio, entre as amendoeiras. Ele contava-me coisas da sua terra. Falava sempre muito baixo. O som da sua voz parecia o som de uma flauta. E apesar de a censurar, mirou-se elegante nas águas do rio.
O NÚBIO PAI DE SANTO GAY
É verdade, o Tetrarca não deve vê-lo. Vamos esconder o cadáver.
A GUARDA CARIOCA
O Tetrarca não vem cá, nunca aparece no terraço. Deve andar aterrado com o profeta.
( Entram Herodes e toda a corte, num trenzinho carnavalesco, eles cantam a música de carnaval: " TÔ COM O DIABO "
TÔ, TÔ, TÔ...TÔ COM O DIABO, EU HOJE ME ACABO...
TÔ, TÔ, TÔ...TÔ COM O DIABO, EU HOJE ME ACABO...
lÁ NO INFERNO É FOGO...
AQUI, EU SOU MAIS FELIZ
VENDO O DIABO DE SAIAS
BOTANDO FOGO
PELO NARIZ
TÔ, TÔ, TÔ...TÔ COM O DIABO, EU HOJE ME ACABO...
TÔ, TÔ, TÔ...TÔ COM O DIABO, EU HOJE ME ACABO...
HERODES
Onde está a Salomé? Onde está a princesa? Por que não voltou ao festim, como ordenei? Ah! Ei-la aqui.
HERODÍADE
Não a olhes tanto. Estás sempre a olhá-la!
HERODES
A lua tem esta noite um estranho brilho, não acham? Parece uma mulher louca, uma doida, à cata de amantes. Está nua, está inteiramente nua. As nuvens procuram cobrir-lhe a nudez e ela foge. A lua está nua como o céu e vacila entre as nuvens como se estivesse bêbada. Vou jurar que procura os amantes. Não parece bêbada? Não parece louca?
HERODÍADE
NÃo; a lua parece a lua, nada mais. Vamos embora. Nada temos que fazer aqui.
HERODES
Hei de ficar. Índia, põe as esteiras. Acende as tochas. Traz as mesas de cipó e as mesas de bambu. O ar é suave. Beberei mais vinho com os meus convivas. Devemos fazer todas as honras aos embaixadores de Roma
HERODíADE
Não é por eles que ficas.
HERODES
É sim. O ar está tão fino. Os nossos hóspedes esperam-nos... Ah! Escorreguei! Escorreguei em sangue! É mau agouro, é muito mau. De quem é este sangue?... E este corpo, que faz aqui este cadáver? Pensam que sou como o rei do Egito que não dá festas sem mostrar aos convivas um cadáver... De quem é ele? Não quero olhá-lo.
A GUARDA CARIOCA
É da capitã majestade, da moça que fizeste capitã da guarda há três dias...
HERODES
Não a mandei matar.
O PASTOR CAPÁDOCIO
Suicidou-se, Tetrarca.
HERODES
Por que? Fiz dela a capitã das minhas guardas! Era tão corajosa!
O NÚBIO PAI DE SANTO GAY
NÃo sabemos. O fato, porém, é que se feriu com as próprias mãos.
HERODES
Muito esquisito! Sempre pensei que só os covardes se matavam. Não é verdade, Tijelino, que só os covardes se matam?
O BISPO TIJELINO
Existem alguns que se suicidam. São os ateus. Os ateus são uma gentinha sem fé. Ridículos. Eu os considero imensamente ridículos.
HERODES
Eu também. É ridículo o suicídio.
O BISPO TIJELINO
Todos em Roma riem-se deles. O imperador escreveu-lhes até uma sátira que toda a gente recita.
HERODES
Ah! Escreveu uma sátira? Roma pode tudo, é admirável... Mas não parece esquisito que a jovem capitã tenha se suicidado? Estou triste, estou muito triste. A moça era bela, muito bela mesmo e tinha os olhos cheios de langor. Lembra-me ter visto que ela olhava langarosamente para Salomé. E na verdade olhava.
HERODÍADE
Há outros que fazem o mesmo.
HERODES
O pai dela era um rei. Arranquei-a do reino, e da sua mãe, que era rainha, tu fizeste uma escrava, Herodíade. Para retê-la, até a fiz capitã. Estou triste. Oh! Por que deixaram o corpo aqui? Levem-no para outro lugar. Não quero vê-lo. Levem-no! ( Levam o corpo ) Faz frio no terraço, sopra um vento frio.
HERODÍADE
Não, não há vento.
HERODES
Se eu digo que há... Ouço no ar alguma coisa que parece um bater d'asas, o bater de grandes asas... Não ouves?
HERODÍADE
Não.
HERODES
Pois eu ouço e bem próximo de mim até. É o sopro do vento. Passou... Não. Ouço ainda. Não ouves? É tal qual um bater de asas.
HERODÍADE
Já disse que nÀo há nada. Tu sim, é que estÁs doente. Saiamos.
HERODES
Não estou doente, não. Tua filha é que parece doente de morte. Nunca há vi tão pálida.
HERODÏADE
Tinha te dito que não a olhasses!
HERODES
Sirvam a ceia! ( à partir de agora é servida a ceia exótica a todos que compraram ) Ponham mais vinho aqui! ( põem o vinho ) Salomé, vem beber um pouco de vinho comigo. Tenho aqui um vinho raro. Foi César que me mandou. Molha nele os teus pequenos lábios para que eu possa esgotar a taça.
SALOMÉ HERODIAS
Não tenho sede, Tetrarca.
HERODES
Vês como me responde a tua filha?
HERODÍADE
Acho que faz bem. Por que não a deixas em paz?
HERODES
Tragam-me os frutos. (trazem os frutos ) Salomé, vem comer um pedaço deste fruto. Gosto de ver o sinal dos teus pequenos dentes. Morde um pouco este fruto para que eu possa comer o resto.
SALOMÉ HERODIAS
Não tenho fome Tetrarca.
HERODES
Vê como tens educado Salomé!
HERODíADE
Eu e minha filha descendemos de uma família real. Quanto a ti, teu pai era um camelô, um patife, um ladrão.
HERODES
Mentes!
HERODÍADE
Sabes que falo a verdade.
HERODES
Salomé, vem para junto de mim. Te darei o trono de tua mãe.
SALOMÉ HERODIAS
Não estou cansada, Tetrarca.
HERODÍADE
Vê com que olhar ela te olha.
HERODES
Tragam-me... Que desejo eu?... Esquecia-me. Ah! ah! recordo agora... Meus presentes, eu quero abrir ( abre os presentes, objetos de sex shop )
IOKANAAM, O PROFETA
Chegou o dia! Aquilo que profetizei acaba de se dar. Chegou o dia!
HERODÍADE
Manda o calar. Não suporto a sua voz. Esse homem está sempre a dirigir-me insultos.
HERODES
Nada disse contra ti. Ao demais, é um grande profeta.
HERODÍADE
Não creio nos profetas. Pode um homem dizer tudo quanto vai acontecer? Ninguém sabe isso. Ele não faz senão vociferar insultos, e eu penso que já lhe tens medo. E penso bem. Tens lhe medo!
HERODES
( examinando com uma curiosidade infantil os objetos de sex shop ) Não tenho; eu não tenho medo de ninguém!
HERODÍADE
E eu digo que tens. Se não o temes, por que a seis meses não o entregastes aos judeus?
O JUDEU
É verdade senhor, teria sido melhor.
HERODES
Basta, não falemos mais nisso. Não o entrego a ninguém. É um santo homem que viu Deus.
JUDEU
NÃo é possível. Só um homem viu Deus: Elias. Elias foi o último homem que viu Deus, face a face. Nesse tempo Deus mostrava-se. Depois a terra cobriu-se de pecados.
O NÚBIO PAI DE SANTO GAY
Ninguém sabe se Elias viu Deus, talvez fosse só a sombra de Deus.
O BISPO TIJELINO
Deus nunca se ocultou. Está em toda a parte, a toda hora, e mostra-se no mal como no bem.
HERODÍADE
Fosse assim e não o verias. É uma perigosa doutrina que nos veio de Alexandria, onde se ensina a filosofia dos gregos. E os gregos são gentílicos, não foram circuncisados. ( ri )
HARE KRISNA
Ninguém pode dizer como Deus trabalha. São obscuros os seus desígnos. Talvez aquilo que chamamos males sejam bens. Nada se sabe ao certo. Devemos apenas curvar a cabeça ante a sua vontade. Deus é todo-poderoso, reduz a pó o forte como o fraco, a todos iguala.
O JUDEU
Diz a verdade. Deus é terrível e o forte e o fraco reduz a pó, como os homens quebram os grãos de um almofariz. Por consequência, esse homem nunca viu Deus, a não ser o profeta Elias.
HERODÍADE
Manda-os calar... incomodam-me!
HERODES
Tenho ouvido dizer, entretanto, que Iokanaam é o verdadeiro profeta Elias.
O JUDEU
Não pode ser, há mais de trezentos anos que viveu Elias
O NÚBIO PAI DE SANTO GAY
Estou certo que é o profeta Elias.
HERODES
Olhe um que considera esse homem Elias.
O JUDEU
Não, não é.
IOKANAAM, O PROFETA
( só a voz ) Está a chegar o dia do Senhor. Ouço nas montanhas os passos daquele que será o Salvador do mundo.
HERODES
Que quer dizer isso? O Salvador do mundo?
O BISPO TIJELINO
É um dos títulos adotados por nosso Senhor.
HERODES
Ele não pode vir. Está gordo demais. Dizem que os seus pés parecem os pés de um elefante. Há também razões de Estado. Se deixar Roma, poderá perdê-la. Contudo, é o Senhor. Virá, se for do seu agrado. Entretanto, é provável que não venha.
HARE KRISNA
Não é de Roma que o profeta fala, Majestade.
HERODES
Como? Não é de Roma?
MONGE BUDISTA
Não, Majestade.
HERODES
Então de quem fala?
HARE KRISNA
De Deus, que reencarnou...
O JUDEU
O Messias não veio.
MONGE BUDISTA
Veio e já tem feito muitos milagres, é um Avatar, uma reencarnação de Deus.
HERODÍADE
Oh! oh! milagres! Não acredito em milagres. Tenho visto muitos... ( ao pagem ) Meu leque. Um Avatar... ah, ah, ah... Deus ah, ah, ah...
HARE KRISNA
Pois este homem os tem feito verdadeiros. Em certa cidade, numa pequena cidade, cidade de alguma importância, mudou a água em vinho. Algumas pessoas presentes contaram-nos o fato. E também curou dois leprosos, que estavam sentados à porta de um templo, tocando-os com os dedos.
MONGE BUDISTA
Não eram leprosos, eram cegos.
HARE KRISNA
Eram leprosos. Tem também curado muita gente cega e foi visto na montanha conversando com os semi- deuses, que voçês chamam de anjos.
O JUDEU
Não há semi-deuses. Mas anjos, há. O que eu não acredito é que esse homem com eles conversasse.
HERODÍADE
Como aborrecem! são ridículos, extremamente ridículos. ( À Índia ) Meu leque? ( a Índia dá o leque ) Tens um olhar de sonhador. Não deves sonhar. Só os povos doentes sonham. ( dá com o leque na Índia ).
O MONGE
Há também o milagre da filha de Jório.
HARE KRISNA
Sim é certo, ninguém o nega.
HERODÍADE
Estão doidos. Olharam muito prá lua.
HERODES
Que milagre é esse?
O MONGE
A filha de Jório estava morta e ele a levantou do túmulo.
HERODES
Como? Dá então vida aos mortos?
HARE KRISNA
Sim, Majestade, levanta os mortos dos sepulcros.
HERODES
Não quero isso, não consinto que os homens ressuscitem. Esse homem deve ficar sabendo que o proíbo de ressuscitar os mortos! Onde está neste momento?
O MONGE
Está em todo lugar, mas é difícil encontrá-lo.
O JUDEU
Dizem que está na Bahia, e se está na Bahia, vê-se logo que não é o Messias. Não aparecerá aos baianos, porque estes foram amaldiçoados.
O MONGE BUDISTA
Deixou a Bahia, há poucos dias. deve andar pela vizinhança de Belém.
HARE KRISNA
Não, nÃo está lá. Acabo de chegar de lá. Há cerca de dois meses não se sabe notíçias d'Ele.
HERODES
Que importa! Se o acharem, porém, digam-lhe que assim falou Herodes o Rei: " Proíbo que ressuscite os mortos ". Pode mudar a água em vinho, curar leprosos e cegos... pode fazer tudo isso se quizer. Nada sei de contrário a esse atos e até acho bondade curar um leproso. Ninguém entretanto, poderá ressuscitar os mortos. Seria horrível se um morto tornasse a viver.
IOKANAAM, O PROFETA
( SÓ a voz ) Ah! a impuddica! Ah! infame Ah! a filha da Babilônia com as suas pálpebras de luz e os seus olhos d'oiro! O Senhor disse: deixa que a persiga a multidão! Deixa que o povo lhe atire pedras...
HERODÍADE
Manda-o calar!
IOKANAAM, O PROFETA
( só a voz ) Deixa que os capitães inimigos lhe retalhem a carne à espada, que a esmaguem ao peso dos broquéis!
HERODÍADE
Oh! Isso é infame!
IOKANAAM, O PROFETA
( sÓ a voz ) Então apagarei toda a perversidade da terra e as mulheres não mais saberão imitar as suas abominações!
HERODÍADE
Ouves o que diz contra mim; conteça uma desgraça. Não falemos mais nisso... Nobre Herodíade, não cuidamos dos nossos hóspedes! Enche tu a minha taça, ó minha bem amada, Oh! enche de vinho os copos de prata e os copos de cristal. Quero beber à saúde dos Papas. Há aqui romanos. Podemos beber à Roma.
TODOS
A Roma!
HERODES
Não vês como está pálida a tua filha?
HERODÍADE
Que te importa?
HERODES
Nunca a vi tão pálida.
HERODÍADE
Pois deixa de olhá-la.
IOKANAAM,O PROFETA
( só a voz ) Nesse dia o sol enegrecerá como uma grenha negra, a lua ficará em sangue e as estrelas do céu cairão sobre a terra como figos verdes. E os reis da terra terão medo!
HERODÍADE
Ah! ah! eu gostaria de ver esse dia de que fala, esse dia em que a lua ficará em sangue e as estrelas do céu cairão sobre a terra como figos verdes. Este profeta fala como um bêbado... mas eu não posso suportar o timbre da sua voz! Odeio aquela voz! Manda-o calar.
HERODES
Deixa-o. Não o compreendo bem, mas talvez seja agouro.
HERODÍADE
Não creio em agouros. Fala como um bêbado!
HERODES
Pode ser que esteja bêbado do vinho de Deus!
HERODÍADE
Que vinho é esse agora? De que vinha o arranjaste? Em que adega o encontraram?
HERODES
( de onde está seus olhos convergem para Salomé ) Tigelino, quando últimamente foste à Roma, de certo falaste à respeito do...
O BISPO TIJELINO
A respeito de que, meu senhor?
HERODES
Á respeito de que? Ah! fiz-te uma pergunta, não? Esqueci-me. De que falava eu?
HERODÍADE
Estás outra vez a olhá-la! Já te disse que não deves olhar assim para minha filha.
HERODES
Não diz outra coisa.
HERODÍADE
E tenho de repetir.
HERODES
Ah! é verdade. E a restauração do Templo, de que tanto se falou há tempo, não quererá Roma recomeçá-la? Dizem que do Santuário desapareceu o véu, não sabem?
HERODÍADE
Foste tu mesmo que o roubaste. Falas da aventura sem espírito. Não fico mais aqui. Vamos embora.
HERODES
Dança para mim, Salomé.
HERODÍADE
Não quero vê-la dançar.
SALOMÉ HERODIAS
Não tenho vontade de dançar, Tetrarca.
HERODES
Salomé! Salomé, filha de Herodíade, dança para mim!
HERODÍADE
Deixa-a sossegada.
HERODES
Ordeno que dances, Salomé.
SALOMÉ HERODIAS
Não quero dançar, Tetrarca.
HERODÍADE
Vê como te obedece!
HERODES
Que me importa a mim que ela dance ou não? Que me importa? Estou feliz esta noite, sou excessivamente feliz... Nunca estive tão contente!
O PASTOR CAPADÓCIO
Como está sombrio o Tetrarca, não achas?
O NÚBIO PAI DE SANTO GAY
E que olhar tem ele!
HERODES
E por que não hei de estar contente? Roma, que é a dona da terra, Roma que é a senhora de tudo, considera-me. Acabo ,de receber preciosos presentes seus, e tenho a promessa de que submeterá o meu inimigo, o rei da Capadócia. Talvez até o eliminem em Roma, porque Roma pode fazer tudo quanto imagina. Roma é senhora. Faço muito bem em estar contente. Sou feliz, nunca me senti tão feliz.Não há nada neste mundo que possa perturbar a minha felicidade.
IOKANAAM, O PROFETA
( SÓ a voz ) Ele está sentado no trono, vestido de púrpura. Nas suas mãos se quebrará uma taça de oiro cheia de blasfêmias. E o anjo do Senhor o matará e ele será comido pelos vermes.
HERODÍADE
Ouve o que diz de ti! Diz que os vermes te comerão.
HERODES
Não é de mim que fala. Nunca falou contra mim. É do rei da Capadócia, do meu inimigo. Ele é que será comido pelos vermes. Nunca disse uma só palavra contra mim, o profeta, a não ser que eu tenha pecado tomado por esposa a esposa do meu irmão. Bem pode ser que tenha razão. Tu és estéril.
HERODÍADE
Estéril eu? És tu que dizes isso, tu que levas a olhar para minha filha e queres que ela dançe para te recrear, tu? Eu já tive um filho, tu é que não me deste nenhum; Nem a mim, nem a nenhuma das tuas escravas. Tu é que és estéril!
HERODES
Sossega mulher! Disse que és estéril. Não me deste filhos e o profeta diz que o nosso casamento não é sério. O profeta sabe que é incestuoso e trará males... Temo que esteja com a razão, porque no íntimo concordo com ele. Mas não é próprio o momento para falarmos dessas coisas. Quero estar contente agora. Sou feliz.
HERODÏADE
Agrada-me que estejas de tão bom humor esta noite. É tão raro te ver assim! Mas é tarde. Vamos nos recolher. Esqueces de que temos de fazer uma caçada ao romper do dia. Devemos prestar todas as homenagens aos embaixadores de Roma não é?
O JUDEU
Como está sombrio o Tetrarca!
O BISPO TIJELINO
E que olhar tem ele!
HERODES
Salomé, Salomé, dança para mim! Peço-te que dances. Estou triste esta noite, sim, estou imensamente triste. Quando cheguei pisei em sangue, o que é mau agouro, e ouvi também um bater d'asas, um bater d'asas colossais. Não sei o que acontecerá... Estou triste esta noite. Dança, dança, Salomé; peço-te que dances... Se dançares podes pedir o que quiseres. Dou-te tudo! Dança Salomé e depois pede, que eu te darei até metade do meu reino.
SALOMÉ
( erguendo-se ) Me darás o que eu te pedir, Tetrarca?
HERODÍADE
Não dances, minha filha!
HERODES
Tudo o que pedires, até mesmo a metade do meu reino.
SALOMÉ HERODIAS
Jura, Tetrarca.
HERODES
Juro, Salomé.
HERODÍADE
Não dances, minha filha.
SALOMÉ HERODIAS
Tetrarca, juraste.
HERODES
Jurei.
HERODÍADE
Minha filha, não dances.
HERODES
Até a metade do meu reino! Ficarás forte, Salomé, como uma rainha. Se te agradar te darei metade do meu reino. Não é Salomé forte como uma rainha? Ah! Faz frio aqui, sopra aqui, um vento gélido... E eu ouço... Por que ouço no ar este bater de asas? Ah! a imaginação faz-me sentir um enorme pássaro preto a passar sobre o terraço. Porque não poderia ver o pássaro? O rumor das suas asas é terrível. Que vento glacial! Não, Não está frio, faz calor. Estou sufocado. Molha as minhas mãos, dá-me neve para comer, desaperta o meu manto. Já. Já. Desaperta o manto. Não. Deixa-o. É a grinalda, a grinalda de rosas que me faz mal. As rosas parecem fogo, queimam-me a cabeça. (tira a coroa e lança-a à mesa ) Ah! respiro, afinal! Como estão rubras aquelas pétalas! Lembram mançhas de sangue. Mas não é de bom aviso achar símbolos em tudo o que se vê. Fica-se com a vida cheia de horrores. É melhor pensar que as manchas de sangue parecem pétalas de rosas, é muito melhor... Não falemos mais disso. Estou contente agora, muito contente.Não tenho o direito de ser feliz? Tua filha vai dançar, não vai Salomé? Prometeste.
HERODÍADE
Não a quero ver dançar!
SALOMÉ HERODIAS
Eu dançarei, Tetrarca.
HERODES
Ouve o que diz tua filha. Vai dançar! Fazes bem, Salomé. E depois, não esqueças que me podes pedir tudo o que quiseres, mesmo metade do meu reino. Eu jurei, não?
SALOMÉ HERODIAS
Juraste, Tetrarca.
HERODES
E nunca faltei à minha palavra. Não sou dos que quebram juramentos, nào sei mentir. Sou escravo da minha palavra que é palavra de Rei. O Rei da Capadócia já muitas vezes mentiu, mas não é um rei próprimente, é um covarde. Deve-me até dinheiro e não me paga. Em compensação, insultou o meu embaixador, disse coisas de doido. Roma irá eliminá-lo quando o pilhar... É pelo menos a minha idéia. E se o eliminarem morrerá o Rei da Capadócia, e será comido pelos vermes. O profeta já o profetizou! Bem! Que esperas Salomé?
SALOMÉ HERODIAS
Espero que a Ama me traga os perfumes e os sete véus; Espero que me descalce as sandálias. ( a Ama tra os perfumes e os sete véus e tira as sandálias de Salomé)
HERODES
Ah! Vais dançar com os pés nus? Bem, muito bem! Esses pequenos pés parecem pombas brancas, lembram florinhas alvas a bailar entre as árvores... Não! Não Vais dançar no sangue. Há sangue derramado no chão. Não deves dançar no sangue. É mau agouro.
HERODÍADE
Que importa? Tu também já patinhaste muito no sangue.
HERODES
Que importa? Oh! Olha a lua! Está como sangue. O profeta disse a verdade, o profeta profetizou que a lua ficaria como sangue. Não ouviram? Todos ouviram? Profetizou! E agora a lua parece de sangue! Não vês, não vês?
HERODÍADE
Oh! sim, vejo. E as estrelas estão caindo como figos verdes, não é? E o sol está ficando como uma grenha negra e os reis da terra estão todos a tremer de medo. Há pelo menos uma justificativa para as palavras do profeta, é que os reis da terra tem medo... Vamos embora, para dentro. Estás doente. Eles dirão em Roma que és covarde. Vamos embora, anda.
IOKANAAM, O PROFETA
( só a voz ) Quem é esse que vem de Edom, quem é esse que vem de Bozra, cujas vestes são de púrpura e passeia o brilho dos ornamentos e a soberba da sua grandeza? Po que manhaste a roupa de vermelho?
HERODÍADE
Vamos embora! A voz d'aquele Homem endoidece-me. Não quero ver minha filha dançar com o barulho da sua grita, não quero que ela dance enquanto a olhares com tanta luxúria. Não! definitivamente, não quero vê-la dançar.
HERODES
Não te levantes, ó minha esposa, ó minha rainha. É inútil. Só sairei daqui depois de vê-la dançar. Dança, Salomé, dança!
HERODÍADE
Não dances, minha filha!
SALOMÉ HERODIAS
Estou pronta, Tetrarca. ( Salomé dança a dança dos sete véus ) ( toda a corte será coreografada em clima de luxúria, com uma trilha sonora muito triste, com sons de várias espécies de choros )
HERODES
Admirável! Admirável! Vê! Tua filha dançou. Vem cá, Salomé, vem cá, fica bem perto de mim para receberes a tua paga. Ah! Pago por um preço real os que dançam para ao prazer dos meus olhos. Te pagarei régiamente, te darei tudo o que a tua alma ambicionar. Que queres tu? Fala!
SALOMÉ HERODIAS
( ajoelhada ) Quero que tragam já, num grande prato de prata...
HERODES
( rindo ) Num grande prato de prata? Sim, decerto, num grande prato de prata... É encantadora, não é? Que poderão te trazer num prato de prata, ó doce e pura Salomé, formosa ente as formosas filhas de nossa terra? Que conterá esse prato de prata? Diz. Seja o que for, tu, o terás. Pertence-te os meus tesouros. Que desejas, Salomé?
SALOMÉ HERODIAS
( ajoelhada ) A cabeça de Iokanaam.
HERODÍADE
Ah! Pedes bem, minha filha.
HERODES
NÃo, não!
HERODÍADE
Pedes bem, minha filha.
HERODES
Não, não, Salomé! Não é o teu desejo! Não te guies por tua mãe! É mulher que só dá maus conselhos. Não ouças.
SALOMÉ HERODIAS
Não é a minha mãe que ouço, é o meu próprio desejo de ver a cabeça de Iokanaam num grande prato de prata. Juraste, Herodes, não te esqueças do juramento.
HERODES
Bem sei; jurei pelos meus deuses, bem sei. Mas suplico-te Salomé, pede-me outra coisa. Pede-me metade do meu reino e não o recusarei, pede-me o que quiseres, mas não me peças o que teus lábios pede.
SALOMÉ HERODIAS
Peço a cabeça de Iokanaam.
HERODES
Não, não! Não te posso dar.
SALOMÉ HERODIAS
Herodes, juraste.
HERODÍADE
Sim, juraste, todos ouviram. Juraste diante de toda a gente.
HERODES
Cala-te, mulher! Não é contigo que eu falo.
HERODÍADE
Filha, fizeste bem, pedindo a cabeça de Iokanaam. Esse homem cobriu-me de insultos, disse contra mim miseráveis horrores. Vejam como Salomé ama sua mãe! Resiste filha, ele jurou, ele fez um juramento.
HERODES
Cala-te! Não me fales!... Salomé, suplico-te! Não sejas teimosa. Sempre fui tão bom prá ti, sempre te amei tanto!... Pode ser que tenha amado demais até. Entretanto, nunca pedi essas tremendas e terríveis coisas que me pedes. Estás a brincar,não? É mau olhar para a cabeça de um homem separada do tronco. Ficariam tristes os teus olhos se para tal coisa olhassem. Depois não há prazer; que prazer há nisso? Não, não! Não é teu esse desejo. Escuta! Tenho uma grande esmeralda, redonda, que me mandou a favorita de Roma... Quando se olha através dessa esmeralda, vê-se tudo quanto ao longe se passa. O Papa sempre que vai ao circo, leva uma esmeralda idêntica. A minha é porém maior, é talvez a maior esmeralda de todo o mundo. Se a desejas, pede-me, que eu te darei!
SALOMÉ HERODIAS
Peço a cabeça de Iokanaam.
HERODES
Estás a brinca, estás! Deixa-me falar, Salomé...
SALOMÉ HERODIAS
A cabeça de Iokanaam!
HERODES
Não, não a queres! Diz isso só para torturar-me porque toda a noite não tirei de ti os olhos. É verdade: olhei-te muito toda a noite...A tua pureza perturbou-me, perturbou-me abominavelmente! Olhei-te muito! Mas não olho mais... Nem tudo se pode ver, e para a gente se ver bastam os espelhos que nos refletem os rostos... Oh! Oh! Tragam o vinho! Tenho sede... Salomé! Salomé! Sejamos amigos. Reflete...Ah! Que estava a dizer? Que era mesmo? Ah! Recordo... Salomé, vem para mais perto de mim, temo que não queiras ouvir as minhas palavras... Salomé, conheces os meus pavões brancos, os meus belos pavões brancos que andam pelo jardim entre os mirtos e os ciprestes. Comem os grãos que foram semeados com oiro, tem os icos doirados e os seus pés são de púrpura. Cai a chuva quando gritam e a lua esconde-se ao vê-los abrirem o alvo leque das caudas. Andam dois a dois, aos pares entre os ciprestes e os mirtos negros, e tem cada um para cuidá-lo um escravo. Ás vezes voam pelas árvores ou então deitam-se na relva circundando os lagos. Não há em todo o mundo pássaros tão belos. Na própria Roma não se tem tão lindos... Dou-te cinquenta pavões! Te seguiram onde fores, e parecerás assim, a lua entre nuvens brancas... Dou-te todos até! Tenho cerca de cem. Não há no mundo rei que tenha pavões brancos iguais aos meus. Mas dou-te todos! Somente, liberta-me do meu juramento e não me peças as coisas que teus lábios pedem. ( enche o copo de vinho )
SALOMÉ HERODIAS
A cabeça de Iokanaam!
HERODÍADE
Filha, muito bem. É ridículo com os teus pavões.
HERODES
Cala-te! Estás sempre a gritar. Gritas como uma galinha. Não grites assim. A tua voa incomoda. Cala-te, anda! Salomé, pensa no que vais fazer. Pode muito bem ser que esse homem seja enviado de Deus. É um santo. Tocou-o a graça de Deus. Deus pôs-lhe na boca terríveis palavras e tanto no palácio como no deserto está sempre com ele, Deus... Pode bem ser que seja Ele afinal. Ninguém o afirma, mas é muito possível que Deus o proteja. Se morrer, acontece dacerto alguma desgraça. Já tem dito que infortunado será alguém no dia em que morrer? Quem senão eu será o infortunado? Ainda há pouco, ao chegar,escorreguei no sangue e ouvi um rumor de asas, o formidável bater de grandes asas! Tudo isso é mau agouro. E há outras coisas estou certo de que vi outras coisas. Não queres que me aconteça uma desgraça, não é, Salomé? Escuta ainda...
SALOMÉ HERODIAS
A cabeça de Iokanaam!
HERODES
Não me atendes? Acalma-te! Vê como eu estou calmo! Estou imensamente calmo... Olha! Tenho jóias ocultas no palácio, jóias que tua mãe nunca viu, jóias maravilhosas. Tenho um colar de pérolas de quatro fios. Parecem luas presas entre raios de prata, são como meio ceno de luas agrilhoadas a uma rede de oiro. Foram feitas para ornar o colo ebúrneo de uma rainha. Ficarás bela como uma rainha quando a usares... Tenho ametistas de duas espécies: são umas negras, parecem vinho; sào outras rosadas como a água corada pelo vinho. Tenho topázios amarelos como os olhos dos tigres, topázios cor de cravo como os olhos dos pombos, topázios verdes como os olhos dos gatos. Tenho opalas, que cintilam uma chama fria como o gelo, opalas que fazem os homens pensativos, tristes e sombrios. Tenho ônixes que lembram as olheiras das mulheres mortas, tenho pedras lunares que mudam quando mudam a lua e descoram quando cresce o sol... Tenho safiras grandes como um ovo e azuis como o azul das flores. Erra no seu seio o mar e a lua nunca lhe perturba o mel das vagas. Tenho crisólitas, berilos, crizobrázios e rubis; sardônicas, pedras da Calcedônia e posso dar tudo, tudo e muita coisa mais. O Rei das Índias mandou-me quatro belíssimos leques de penas de pardal, o Rei da Numídia uma veste de penas de avestruz. Possuo um cristal que não devem ver as mulheres, nem os moços, antes de serem batidos com varas. Tenho, num cofre de nácar, três turquesas admiráveis. Quem as colocar na fronte pode sonhar coisas que não existem, e a mulher que as usar nas mãos, se for estéril, se tornará fecunda. São grandes tesouros estes, acima de qualquer preço; mas não são todos... Dentro de um cofre de ébano guardo dois copos de âmbar que parecem pêras de oiro e se transformarão em pêras de prata se um inimigo lhes deitar veneno. Em outro, incrustado de âmbar, guardo também o sândalo incrustado em vidro, e tenho mantos trazidos da terra de Sévres e braceletes guarnecidos de carbúnculos e de jade, vindos das bandas do Eufrates... Que desejas mais, Salomé? Diz-me o que desejas e o teu desejo será realidade. Te darei tudo quanto pedires... É teu tudo que é meu, menos a vida de um homem. Dou-te o manto de mais sabido valor, dou-te o véu do santuário!...
O JUDEU
Oh! Oh!
SALOMÉ HERODIAS
Dê-me a cabeça de Iokanaam.
HERODES
( caindo da cadeira ) Que seja feito o que ela pede! É bem filha de sua mãe! (a guarda aproxima-se. Herodíade tira o anel da mão do Tetrarca, o anel da morte, e dá ao guarda que o entrega imediatamente ao Executor. O Executor olha assustado. )
HERODES
Quem tirou o meu anel? Havia um anel na minha mão direita... Quem bebeu o meu vinho? Havia vinho nomeu copo! Estava cheio de vinho. Alguém bebeu-o!... Oh!, vai acontecer decerto alguma desgraça! ( o executor desce à cisterna ) Jurei! Não juro mais. Senão cumprir o juramento será horrível, se o cumpro é também horrível...
HERODÍADE
Fizeste bem, minha filha.
HERODES
Estou certo de que vai se dar uma grande desgraça...
SALOMÉ HERODIAS
( inclina-se para a cisterna e escuta ) Não há o menor rumor. Nada ouço. Por que não chora ele? Ah! Se alguém me quisesse matar, eu gritaria, resistiria... Fere, fere Naamar, anda!... Não ouço nada, só o silêncio, o terrível silêncio. No chão não caiu nada ainda. Ah! caiu alguma coisa. Foi a espada do executor... Tem medo, o escravo! Deixou cair a espada. Não tem coragem de matá-lo... É covarde, o escravo. Vou mandar a guarda... ( vê a Pajem de Herodíade ) Vem cá! Foste amiga do que morreu, não foste? Pois não é ainda suficiente o número de mortos. Manda que a guarda desça e traga o que eu pedi, o que o Tetrarca prometeu. É meu já. ( pajem afasta-se, ela e morde um fruto verde. Vou beijar a tua boca, Iokanaam! Não tinha te dito? Não te disse? Vou beijá-la agora. Mas por que não me olhas, Iokanaam? Os teus olhos terríveis, cheios de raiva e desprezo cerraram-se. Por que fechaste os olhos? Abre-os, are os olhos, descerra as palpébras Iokanaam! Por que não me olhas? Terás medo de mim?... A tua língua que parecia uma serpe rubra secretando veneno, não se move mais; e nem mais uma palavra diz, Iokanaam, essa víbora vermelha que tanto veneno trazia! Estranho não é? Como está agora a serpe rubra que não se move mais? Não me quiseste mais, Iokanaam. Desprezaste-me. Disseste-me más palavras. Disseste bem junto a mim, que eu era a lascívia e a baixeza; a mim, a princesa Salomé herodias! Eu estou viva e tu morto! Pertence-me a tua cabeça. Posso faer dela o que eu quizer, dá-la aos cães e às aves do ar. Quando os cães estiverem fartos, as aves acabaram de devorá-la... Ah! Iokanaam! Iokanaam! Foste tu o único homem que eu amei. A todos sempre odiei e só por ti tive amor porque eras puro! Teu corpo lembrava uma coluna de marfim cuja base fosse de prata, um jardim cheio de pombos e de lírios argênteos, uma torre coberta de broquéis ebúrneos. Não havia no mundo nada mais branco que o teu corpo, nada mais negro que os teus cabelos, nada mais vermelho que a tua boca. Da tua voz se desprendiam perfumes de estranhos incensários e quando em ti meus olhos repousavam, era como se ouvisse uma estranha músic. Ah! por que não me olhaste, Iokanaam? Ocultavas, com as costas das mãos e capa das blafêmias, a face; e de mim arredavas os olhos que tinham visto Deus... Viste Deus, Iokanaam, mas não me verás jamais, e se me tivesses visto, me amarias, decerto! Te vi e te amei. Oh! como te amei! Amo-te loucamente ainda Iokanaam, a ti só... Tenho sede da tua pureza, tenho fome do teu corpo e nem o vinho, nem os frutos podem desalterar ou acalmar o meu desejo! Que farei agora, Iokanaam? Nem as ondas do mar, nem as águas da terra podem apagar esta chama... Era uma princesa, e desprezaste-me; era virgem e tomaste a minha virgindade; era casta e lançaste-me nas veias o fogo do amor... Ah! ah! Por que não me olhaste? Teria decerto, me amado! Bem sei que me terias querido... O mistério do amor é muito maior que o mistério da morte.
HERODES
É monstruosa a tua filha, é monstruosa! Te digo que cometeu um grande crime, porque tenho a certeza de que é um grande crime, contra Deus.
HERODÍADE
Eu estou satisfeita. Fez bem. Como é bom estar no terraço agora!
HERODES
( levantando-se ) Ah! Fala mulher de meu irmão. Vem! Não quero ficar, vem! Anda! Vão se dar coisas terríveis... Apaguem as tochas. Não quero que ningúem me veja! Apaguem as tochas! A lua esconde-se! Escondem-se as estrêlas! Vamos nos esconder no palácio, Herodíade! Começo a ter medo... ( apagam as tochas, as estrêlas desaparecem, uma grande nuvem oculta a lua, fica tudo escuro, o Tetrarca sobe as escadas )
SALOMÉ HERODIAS
( só a voz ) Ah! beijei a tua boca, Iokanaam! Beijei a tua boca! Os teus lábios tem um gosto amargo. Era gosto de sangue? Não! Foi talvez o gosto do amor... Dizem que o amor tem um gosto amargo...Mas o que importa? Beijei a tua boca, Iokanaam, beijei a tua boca!... ( um raio de luz ilumina Salomé )
HERODES
( voltando-se e vendo Salomé ) Matem aquela mulher! ( executor mata Salomé )
A AMA
( entra e recolhe o corpo de Salomé, cantando )
Eis o filho que herdei da noite de Iduméia!
Negra, de asa sangrante e pálida, ninféia,
Pelo vidro a queimar de arômatas e adornos,
Pelos vitrais gelados, ah! ainda mornos
A aurora se lançou ao lume angelical.
Palmas! e quando tal troféu alça afinal
A esse pai que um sorriso hostil concede à hora,
A solitude azul e estéril estertora.
Berço e canção, com tua filha e o impoluto
De vossos pés, acolhe o tenebroso fruto:
E tua voz, viola e cravo, em tal anseio,
Com o dedo fanado apertarás o seio
De onde flui em alvor sibilino uma ama
Para os lábios que o ar do azul virgem inflama?
( a Ama sai levando o corpo de Salomé / fica em cena a cabeça do profeta que começa a falar enquanto alça um vôo rumo ao céu )
IOKANAAM, O PROFETA
( só a voz ) O sol que um sobressalto
Apruma para o alto
Em breve redescende
Incandescente
Por um momento a treva
Das vértebras se eleva
Em uníssono passo
Por todo o espaço
Para que esta cabeça
Solitária apareça
No vôo singular
Da foice no ar
Em completa ruptura
Mais repele ou fratura
A desavença antiga
Que ao corpo a liga
Bêbada de jejum
Que persegue nalgum
Salto louco a vogar
Seu puro olhar
Lá no alto onde os cumes
Eternos tem ciúmes
Todos ó gelos
Mas levada ao abismo
Pelo mesmo batismo
Que elegeu minha sina
Grata se inclina.
( o povo miserável, da cena 1, invade armado, o ambiente, rende a corte de Herodes e seus convidados religiosos, que com armas apontadas para as suas cabeças, começam a rezar aos seus diversos deuses, enquanto os fantasmas de Salomé, do Profeta e da Chefe da Guarda, puxam os aplausos finais. )
FIM